sexta-feira, 3 de abril de 2009

Opinião: A Moleskine de um editor (2), por Manuel Alberto Valente

A MOLESKINE DE UM EDITOR (2),
por Manuel Alberto Valente (*)

Hugo Xavier abriu a caixa de Pandora, ao abordar no seu texto, aqui publicado (27 de Fevereiro), a delicada questão dos tradutores. Não há tema mais complexo neste complicado mundo dos livros (e não só cá, evidentemente – quantas vezes eu vi, na Feira de Frankfurt, tradutores alemães com crachás reivindicativos…). No meio da polémica que se instalou, destacaram-se pela sua inteligência os textos de Tânia Ganho e Helena Pitta: tradutoras cultas e atentas, com uma consciência muito aprofundada da responsabilidade cultural que o seu trabalho exige. Fossem todos (e todas) assim…

A verdade é que há maus tradutores. Pergunta: nesse caso, porque se recorre a eles? A resposta é paradoxalmente simples: porque os bons tradutores não são suficientes para garantir as necessidades (crescentes) da edição portuguesa.

E importa pouco, para este efeito, abordar a questão das remunerações: um mau tradutor, ainda que bem pago, continua a ser um mau tradutor; da mesma maneira que, ainda que eventualmente mal pagos, os bons tradutores não deixam os seus créditos por mãos alheias.

É evidente que todo o tradutor tem deslizes: um dos nomes mais prestigiados da tradução portuguesa pôs um dia uma personagem a comer pombas por desconhecer que, em espanhol, as «palomitas» são também pipocas…

Face ao trabalho dos maus tradutores e aos deslizes dos bons, recorre-se, como é sabido, ao trabalho posterior dos revisores (figura que também já foi aqui abordada por José Alfaro, em 16 de Março). Mas o problema repete-se: onde estão, salvas as crónicas excepções, os bons revisores, capazes, não apenas de caçar gralhas e pôr vírgulas, mas de adequar o texto à sua função final de ser um texto em bom português?

Daí que devesse ser cada vez mais importante a emergência, dentro das próprias editoras, do editor, técnico editorial cuja missão é precisamente trabalhar a versão do tradutor e introduzir-lhe todas as alterações necessárias para conseguir uma adequação fiel (o mais fiel possível) do resultado «de chegada» ao texto «de partida».

De há anos a esta parte, como responsável editorial, deixei de recorrer a revisores externos. Prefiro formar, internamente, uma equipa de coordenadores editoriais que leia (e releia) as traduções recebidas e as transforme, quando necessário, em textos que não traiam o autor nem envergonhem a chancela que os publica. Fica mais caro, como é evidente, mas tenho a certeza de que o público leitor fica mais bem servido.

Todos sabemos, infelizmente, que não é essa a prática mais corrente. Há editoras que mandam as traduções directamente para a paginação, dão as provas a ler a um qualquer (improvisado) revisor e, feitas as emendas, aí está o livro a imprimir, quantas vezes com páginas e páginas que nem o mais arguto dos leitores consegue decifrar e entender. Não é preciso dar exemplos; todos sabemos que assim é.

A responsabilidade cultural que a edição implica aconselharia a que todos os actores deste longo processo se pautassem por um acérrimo respeito pelo leitor – seja esse leitor um apaixonado pela obra de Musil ou um devorador compulsivo dos romances de Danielle Steel.

Sob o ponto de vista da literatura, são evidentemente autores de diferente estatuto. Sob o ponto de vista editorial, são textos que merecem idêntico respeito e idêntico profissionalismo.

Em termos estritamente editoriais, não há livros de primeira e livros de segunda. O que há é editores responsáveis e… negociantes de papel impresso. Que atentam contra a cultura e o equilíbrio ambiental – como os maus tradutores.

(*) Manuel Alberto Valente é actualmente editor da Porto Editora para a área da Literatura, depois de mais de 17 anos à frente da área de ficção da Asa. É um dos editores mais experientes do nosso sector.
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