segunda-feira, 9 de março de 2009

A traição das traduções – O comentário de Tânia Ganho

Tânia Ganho juntou-se à discussão motivada pelo post original de Hugo Xavier, continuada por Jorge Palinhos (aqui e aqui). Aqui fica o seu contributo.

«Cara equipa do Blogtailors,

Como sou tradutora, escritora e míope incorrigível a quem a ciência do laser fechou as portas, senti-me naturalmente arrastada para o vosso debate sobre traduttori traditori. À semelhança do que aconteceu com o Hugo Xavier, também eu passei pelo consultório de um oftalmologista filósofo que, no meu caso, me aconselhou, quando eu tinha doze anos, a arranjar um namorado para ver se lia menos e se a miopia estabilizava. Aos trinta e seis anos, acabo de mudar de lentes de contacto, que agora têm umas aterradoras -10 dioptrias, prova de que afinal os namorados (e maridos) não servem para corrigir defeitos da córnea e que o prazer da leitura é viciante e compulsivo. E é precisamente esse prazer que está na base das profissões de escritor e tradutor.

Embora actualmente se multipliquem as ofertas de cursos de «escrita criativa» e de «técnicas de tradução», a verdade é que eles de pouco servem, se as pessoas não tiverem à partida o bichinho da leitura. Quando andava na faculdade, tive um professor de espanhol extraordinário, que de vez em quando se entregava a uns épicos ataques de fúria, que me ficaram na memória. Um dia, mandou-nos ler O Cavaleiro Polaco, de Antonio Muñoz Molina, e quando uma voz tímida comentou, da última fila, «mas é tão grosso!», ele atirou com o apagador contra o quadro e gritou: «Tan gordito?! Se acha que um livro é “tan gordito”, vá-se embora, que não está a fazer nada num curso de literatura!» A verdade é que alunos desses, que acham que ler é uma tarefa penosa, abundam nas Universidades e, como as saídas profissionais são poucas, muitos deles acabam por ir parar às editoras, onde traduzem livros com a mesma falta de interesse com que leram as obras recomendadas pelos professores.

Traduzir — e escrever — é uma vocação e não há software nem técnicas inculcadas que nos valham, quando nos falta a capacidade de entrega e devoção ao texto literário. Quando decidi ser tradutora, sabia que não ia ficar rica, o que não quer dizer que pessoas como o Jorge Palinhos não tenham toda a razão quando se insurgem contra as remunerações dos tradutores. Digamos que eu, enquanto tradutora literária com cerca de quinze anos de experiência, contratada por duas editoras de Lisboa, trabalho mais e ganho menos do que qualquer empregada doméstica em Paris. Ora, não me digam que o nível de vida é diferente entre os dois países, porque eu gasto tanto em supermercado em França como em Portugal, a única coisa que é mais barata em Lisboa são as famosas bicas de que fala o Jorge.

Sem desfazer na profissão de empregada doméstica, sobretudo porque me sinto profundamente inepta quando tento aspirar a casa ou lavar a louça sem partir nada (sou extremamente desastrada, como atesta a quantidade de objectos lascados e inutilizados presente em minha casa), julgo que todos concordarão que é mais fácil uma pessoa tornar-se femme de ménage competente em Paris do que tradutora conceituada seja onde for. E mais, quando digo a um desconhecido que sou tradutora literária, regra geral recebo um olhar de profundo desinteresse, senão mesmo de desprezo, como se a minha profissão fosse um passatempo ou uma ocupação de segunda categoria. Houve mesmo quem me perguntasse um dia: «Tradutora? Mas vive-se disso? E agora não há computadores que fazem tudo automaticamente?»

Quando explico a alguém que trabalho sete dias por semana, mas que não há dinheiro que pague a liberdade de trabalhar às horas que quero e de poder tirar férias a contra-corrente das massas de veraneantes, são poucas as pessoas que compreendem o meu sorriso de satisfação, e quando confesso quanto ganho por página (e olhem que não me posso queixar, tendo em conta os preços do mercado!), então aí é que ninguém percebe o meu «brio e empenho». Mas quando se trabalha por vocação, o brio e o empenho vêm naturalmente. Por isso, por mais que compreenda o ponto de vista de que um tradutor mal pago e com facturas pendentes por vezes se atropela e faz um mau trabalho, não podemos usar as más remunerações como desculpa para más traduções. Havia alguém que dizia que pelo preço de um bilhete em segunda classe não se podia esperar um serviço de primeira, mas não é oferecendo um serviço de segunda que vamos ser upgraded para primeira. Enfim, tudo isto para dizer que um tradutor é humano, sim senhor, e os erros são inevitáveis, mas que quando se é perfeccionista como eu, esses erros ficam-nos gravados na mente para sempre, acompanhados por uma angústia terrível que nos faz acordar a meio da noite a pensar «Meu Deus, como é que eu deixei passar aquela asneira??» e, por conseguinte, tentamos evitá-los a todo o custo. (Está certo, eu sou um bocado obsessiva e neurótica…)

Os grandes males que afligem o meio editorial — falta de qualidade de editores, escritores, tradutores, revisores, paginadores, gráficos, comerciais e livreiros — não se resolvem com troca de farpas e acusações entre os diversos intervenientes (embora isso seja inevitável, porque estamos todos cansados de ver a língua e a literatura serem tão mal tratadas). A solução, quanto a mim, reside no diálogo entre todas as partes, como apregoava um dos nossos políticos, há uns anos. É frequente, em Paris, os editores irem almoçar com os tradutores para discutirem o trabalho, os tradutores serem convidados para apresentarem em público os escritores que traduziram, os tradutores trocarem e-mails entre si sobre problemas de tradução, etc. Também é verdade que em França os escritores se insultam uns aos outros com uma virulência inacreditável, mas enfim, os Franceses são conhecidos por serem uns râleurs de todo o tamanho e não temos de copiá-los em tudo. O que me interessa é que têm várias coisas que nós não temos: dicionários excelentes, com uma ortografia nacional e não várias, consoante a editora que publica cada colecção (como é que se escreve «mini-saia» e «micro-ondas»? E, desculpem a digressão, mas acho que apesar de o acordo ortográfico ter óptimas intenções, só vai criar uma confusão ainda maior numa língua que precisava de uma mão de ferro a discipliná-la e não de mais alternativas ortográficas!); verdadeiros livreiros, que sabem o que vendem nas suas livrarias pequeninas mas esforçadas, e são capazes de aconselhar os leitores; sites que referem sempre os nomes dos tradutores a par com os dos escritores (a Wook, por exemplo, de que eu gosto tanto, esquece-se sistematicamente de referir os nomes dos tradutores, como se as obras se tivessem convertido espontaneamente para português); uma deliciosa profusão de prémios literários, uma badaladíssima rentrée littéraire em Setembro e outra em Janeiro, e um Salon du Livre bonito e dinâmico (viva o Correntes D’Escritas!).

Já que estamos numa era de Facebooks, YouTubes e blogues, não temos desculpa para continuarmos a trabalhar isoladamente, cada tradutor no seu cantinho, sem conhecer os escritores que traduz (os vivos, naturalmente) nem os editores que o contratam. Os críticos também têm um papel muito importante nesta história toda e eu sei que é uma tentação enorme apontar as falhas a uma tradução, mas quando ela até está bem feita, não custa nada dar uma palavrinha de incentivo ao tradutor. Não me identifico com os animais de circo que precisam da bolachinha do treinador para efectuarem as suas proezas, mas toda a gente gosta de ver o seu esforço reconhecido… de vez em quando, pelo menos. Pessoalmente, posso dizer que tenho o privilégio de trabalhar com as mesmas duas editoras há cerca de uma década e de ser tratada com um respeito e um profissionalismo que todos os dias me incentivam a trabalhar mais e melhor. Tenho a sorte de me corresponder com muitos dos escritores que traduzo e de tirar dúvidas directamente com eles. Tenho a dádiva de contar com amigos como a maravilhosa tradutora Margaret Jull Costa, que traduz José Saramago e António Lobo Antunes e arranja sempre tempo para me esclarecer e ajudar. Tenho também a benesse de dispor de leitores fiéis, que lêem todas as minhas traduções e escritos antes de eu os entregar às editoras, chamando-me a atenção para eventuais falhas. E, ainda assim, há sempre qualquer coisa que escapa…

Para terminar, penso que devíamos recuperar a tradição do escritor-tradutor (sim, estou a puxar a brasa à minha sardinha), porque traduzir exige uma sensibilidade poética, escrever requer uma autodisciplina férrea e ambos são uma vocação. Nem todos nasceram para ser um Jorge de Sena, uma Maria Ondina Braga, uma Luísa Costa Gomes, um Vasco Graça Moura, um José Bento, um Frederico Lourenço… E acreditem que, quando se é escritor e se vê os seus textos traduzidos por outra pessoa para uma língua que se conhece bem, a experiência é bouleversante, como dizem os Franceses. Aprende-se, num abrir e fechar de olhos, o respeito que se deve a um bom tradutor. E tem-se vontade de bater no mau tradutor, mas, como eu gostava de acabar este texto numa nota positiva, ignorem este último comentário…»

Tânia Ganho é tradutora de autores como Abha Dawesar, Rachel Cusk, David Lodge, Chimamanda Ngozi Adichie, Annie Proulx, Jeanette Winterson, Ali Smith, Anaïs Nin, Nicholas Shakespeare e Terenci Moix, entre outros, e autora de três romances, A Vida Sem Ti e Cuba Libre, publicados em 2005 e 2007, e A Lucidez do Amor, que deverá sair em 2009. Deu aulas ao Curso de Técnicas de Tradução da FLUC, foi tradutora de informação da SIC e desistiu de um cargo na Comissão Europeia (muito bem remunerado), por ter a certeza de que definharia a traduzir textos técnicos. É leitora assídua do Blogtailors, do «Ciberescritas» de Isabel Coutinho, do blogue «Da Literatura» de Eduardo Pitta e do blogue da revista Ler, que lhe permitem acompanhar diariamente a vida literária portuguesa, que está cada vez mais interessante e animada, sobretudo para quem a vê de fora.