segunda-feira, 16 de março de 2009

Opinião: Algumas linhas sobre a nobre profissão de empregado de limpeza (a quem alguns também chamam escravo, capacho ou revisor), por José Alfaro

ALGUMAS LINHAS SOBRE A NOBRE PROFISSÃO DE EMPREGADO DE LIMPEZA (A QUEM ALGUNS TAMBÉM CHAMAM ESCRAVO, CAPACHO OU REVISOR),
por José Alfaro (*)

Dois perigosos lugares-comuns minam a credibilidade dos agentes ligados à produção de conteúdos escritos:
  • o acreditar-se que quem sabe uma língua estrangeira pode ser tradutor;
  • a assunção de que quem escreve razoavelmente bem em português ou quem tem uma licenciatura em Linguística ou em Línguas e Literaturas pode ser revisor.
Nada de mais errado! A um tradutor, exige-se muito mais do que um (bom) conhecimento da língua de partida. (Além de outras competências específicas, terá de dominar, e muito bem, o português, deverá ter sensibilidade, maturidade e uma excelente cultura geral.)
Da mesma forma, as competências requeridas a um revisor não se podem confundir com uma simples licenciatura em Ciências Humanas. Conheço grandes revisores que não têm mais do que o antigo 7.º ano dos Liceus (actual 11.º) ou que vêm de áreas bem diferentes, como a Matemática ou a Biologia. Por outro lado, o diploma em Linguística ou em Línguas e Literaturas, por si só, não habilita ninguém para o trabalho de revisão.
Além de ter um excelente domínio da língua portuguesa, um revisor necessita de conhecer as regras tipográficas e de possuir capacidades de atenção excepcionais (com grande agilidade, em constantes movimentos de zoom, tem de voar do geral para o particular – precisa de dissecar, de isolar a árvore no meio da floresta – para, logo de seguida, regressar à macroestrutura da frase). Por fim, mas não menos importante, um bom revisor deverá perseguir a dúvida até à exaustão e exige-se-lhe uma cultura geral fora do comum. Não é necessário ser-se super-homem ou super-mulher, mas estamos a falar de um trabalho realmente especializado!

Só a total desconsideração pela actividade pode justificar que qualquer um se julgue com capacidades para ser revisor. Tido (mais ou menos conscientemente) como o degrau mais baixo da escala... «criativa», o revisor limpa a grande «obra», vela para que o autor ou o tradutor não caiam no ridículo, acaba mesmo por o(s) salvar em muitas situações. Por tudo isto, é fundamental que a actividade se torne profissão e que o degrau inferior suba até ao lugar que por direito lhe compete.
Todos conhecemos autores – grandes escritores, que provavelmente a posteridade acolherá –que dão erros, da mesma forma que muitos revisores não escreverão nunca um texto que os distinga da mediania comum a todos os mortais «escreventes». Por isso, o processo editorial obriga a um trabalho de equipa: um revisor e um autor não são, para bem deste último, inimigos; parceiros de trabalho, caminham para um mesmo objectivo – se não a excelência, pelo menos a competência do trabalho final.

Por outro lado, os livros de grandes escritores estão longe de preencher a oferta editorial, e muitos dos textos que vêem os prelos chegam às editoras a necessitar, mais do que de revisão, de reescrita. Porque se publicam então? Por razões várias que não cabem nesta reflexão (por exemplo, porque têm mérito e relevância científica, apesar das deficiências da escrita). O que me importa agora sublinhar é a necessidade de reflectirmos sobre o trabalho de editing, tão malvisto entre nós. Reflexão interessante, desde logo porque o editing desafia os limites sagrados da autoria.

E aqui peço emprestadas as palavras da minha colega Conceição Candeias – docente da Formação Avançada em Revisão e Edição de Texto [editing, não publishing] da Universidade Católica – que servem de teaser ao curso deste ano:
«É inegável que o futuro do revisor não pode manter-se dentro dos velhos moldes a que tem estado sujeito nas últimas décadas, obstinadamente preso ao papel e à "caça à gralha", e alimentando uma desajustada reverência ao conceito de autoria, tradicionalmente considerada intransponível e intocável. O panorama editorial tem vindo a mudar, levando a repensar não só os conceitos de autoria e de escrita, mas também, ontologicamente, o lugar e a dimensão do revisor, a quem cada vez mais explicitamente se atribui o papel de mediador de processos de linguagem, "afinador" de intenções, "facilitador" de discursos...
Considera-se que à responsabilidade que impende sobre a figura ágil, atenta e discreta do revisor deve corresponder uma formação compatível, propiciadora e fortalecedora de conhecimentos, métodos e ferramentas de trabalho consistentes, com vista a uma efectiva melhoria das competências desta classe de profissionais, tão precisada de orientação e legitimação.»

Três notas finais:
1. Sou editor, não sou revisor (nem professor de revisão), e tento recorrer a profissionais competentes em todas as circunstâncias. Foi a constatação da dificuldade em encontrar no mercado bons revisores em quantidade que me levou a conceber esta Formação Avançada.
2. Não atiro pedras aos telhados vizinhos indiscriminadamente. Apesar de colaborar, sempre que possível, com bons revisores, sei que no catálogo da minha editora há livros com gralhas. Em alguns casos, conheço de cor a página em que elas estão e os deuses sabem como me tiraram o sono (num caso específico, em que a gralha se guindou a uma posição dominante, não consigo sequer ver o livro à minha frente). Entre o caso da gralha que existe na página tal do livro tal e a total inconsciência que legitima (?) o despautério a que vamos assistindo, vai o tamanho de um mundo.
3. Depois de escrito este texto, chega a notícia de que as instruções de um jogo disponibilizado pelo Magalhães estão crivadas de erros. Dizem os jornais que o programa terá sido traduzido por um emigrante português que há muitos anos vive no estrangeiro e que tem a 4.ª classe. A desconsideração pelo trabalho de profissionais, de tão habitual, começa (perigosamente) a parecer natural...

(*) Editor desde 1987. Coordenador da Pós-Graduação em Edição, da Pós-Graduação em Livro Infantil e da Formação Avançada em Revisão e Edição de Texto da Faculdade de Ciências Humanas da UCP.
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