sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Opinião: A traição das traduções, por Hugo Xavier

A TRAIÇÃO DAS TRADUÇÕES,
por Hugo Xavier (*)

O grande problema que o sector do livro tem de enfrentar todos os dias é a falta de leitores. A leitura continua a ser um prazer de uma minoria e um instrumento de trabalho de uma minoria apenas ligeiramente maior.

Noutro dia um oculista, enquanto fazia um ligeiro acerto nos meus óculos, dizia-me que todos os grandes míopes que lá tinha como clientes gostavam de ler. Isso explica-se por outro episódio engraçado. Quando era miúdo, e ao mudar de oftalmologista, de Espanha para Portugal, numa primeira consulta, ao referir que gostava de desporto, o dito oftalmologista suspirou e interpelou-me: «Até aposto que sei qual é o teu desporto preferido: É o basketball, não é?» Anuí. «Pois é», continuou, «todos os míopes adoram sempre os desafios de jogar com tudo o que envolva a maior dificuldade. Gostam de snooker, de bowling, de brincar com legos em vez de playmobils...» Contudo. aquilo de que queria falar hoje nada tem a ver com a teoria da leitura miópica. Quero falar de um programa grave no sector editorial hoje em dia: as traduções. Quero falar da enorme dificuldade de encontrar bons tradutores e dos motivos que estão por detrás disso.

É, de facto, cada vez mais complicado encontrar bons tradutores, literários e não só. E, curiosamente, o mercado oferece cada vez mais profissionais desta área. São milhares de jovens saídos de Faculdades de Letras, como aquela que frequentei, com cursos de especialização, com conhecimentos dos mecanismos e softwares de tradução. Muitos têm uma formação bem mais completa que alguns dos grandes tradutores da nossa praça, sabem e conhecem as técnicas de tradução dos mais diferentes tipos de texto, estudaram tratados de filosofia e teoria da tradução e tudo isso. Mas falta sempre algo.

Desde há uns anos que faço um teste de tradução com um texto de 5 páginas. É a entrada de um livro inglês. O ano passado, por exemplo, fiz 83 testes de tradução e, contudo, apenas 3 testes foram satisfatórios. Nem sequer bons ou excelentes.

A lista de problemas começa por algo que me preocupa muito nas novas gerações de hoje: uma total falta de empenho e brio. Os testes chegavam nos mais variados formatos informáticos, geralmente com uma péssima apresentação, com espaços entre parágrafos onde eles não tinham espaçamento, com erros de ortografia berrantes que provavam a não existência de um qualquer tipo de revisão ou, ao menos, de segunda leitura. Mas aqueles testes que passavam essa primeira barreira traziam outros problemas. Quase nenhum dos tradutores, apesar do teste incluir a referência ao título da obra e autor, se lembrou de fazer algum tipo de investigação sobre a dita. Se o tivessem feito, provavelmente teriam descoberto na primeira crítica de leitor da Amazon (por exemplo, ou do site da editora ou do do autor), que o livro narra um episódio da vida de um crítico de teatro e da sua gata. E não teriam tido problemas em compreender duas ou três referências do início do livro, em que tentaram incorporar no sentido do texto títulos de peças que apareciam camuflados sem itálicos no texto original. Muito menos teriam mudado o sexo à gata.

Os poucos que sobreviveram a estes problemas tinham o grande problema por resolver: a falta de sensibilidade. Essa falta de sensibilidade é fruto da situação de mercado: estes candidatos a tradutores fazem parte da maioria da população que não lê ou lê pouco. E, no entanto, querem singrar numa área que pressupõe a leitura. Os resultados são terríveis: traduções pejadas de calinadas, mau português, perda de sentido, perda de ambiguidade onde o texto literário a exige. Isto para já não referir que, quando não se é leitor assíduo e competente e se quer traduzir um texto com alguma carga literária, acha-se que se deve manter tão fiel quanto possível ao original e acaba-se por comprometer toda a necessidade de reinterpretação, que é um factor essencial da tradução. Já nem sequer falo aqui do total desconhecimento da língua de partida que resulta na perda ou tradução muitas vezes literal e desprovida de sentido de expressões idiomáticas, da falta de cultura geral que dá origam a erros ridículos de interpretação, ou da falta de informação sobre temas essenciais da obra a traduzir.

Devido à minha profissão e orientação da Cavalo de Ferro, raramente me sobra tempo para ler edições portuguesas (que estão numa pilha ao lado da minha cama, para um futuro mais descansado). Mas, quando o faço, sou constantemente surpreendido pelas traduções assombrosas que por aí pululam. Dou um exemplo: há pouco tempo e por sugestão da Maria Teresa Horta, que há uns anos tinha feito uma crítica ao livro, num intervalo de leituras, resolvi-me a ler uma obra de Fred Vargas, Vai e Não Voltes Tão Depressa, que se anunciava como um thriller literário de qualidade, publicado pela Dom Quixote. Já não vou falar da tradução do título (no original Pars vite et reviens tard), que poderia passar por opção do tradutor. Contudo, quando mergulhei na leitura, mal queria acreditar. Apesar de a minha formação ser em língua inglesa, sentia o francês em toda a tradução, mas o pior nem era isso. Era a quantidade monstruosa de erros de palmatória de português. Acreditem-me que não havia um só pronome reflexo na posição correcta (e mesmo os que não eram reflexos andavam a passear pela estrutura sintática nas posições mais estrombólicas). Não havia página sem erros gravíssimos de português. Pois bem, pouco tempo depois, falei com a Maria Teresa Horta e perguntei-lhe como tinha conseguido ler aquele texto. É que eu não conseguia desligar o meu motor crítico, como consigo em muitos textos, eram erros demais! E na ficha técnica estava o nome de uma revisora! A MTH disse-me que tinha visto os erros, mas que eram algo tão comum à maior parte dos livros que recebia para recensear que já não ligava, sobretudo porque não tinha espaço para passar à parte mais técnica da crítica.

Não quero que entendam esta crónica como uma crítica à classe dos tradutores ou à categoria dos «jovens tradutores», mas que estes defeitos estão presentes na grande maioria deles, estão. Felizmente há excepções.

A verdadinha é que as operações laser e as lentes de contacto têm afastado muito boa gente da leitura; leitores, editores, tradutores e revisores. Temos todos de olhar um bocado melhor para o que queremos fazer porque ainda somos responsáveis pela transmissão de importantes valores culturais e de forma muito clara, porque não são os smsesses, os jornais e revistas, as legendas ou as barras informativas na parte inferior do ecrã dos telejornais que continuarão a mostrar o que é o bom português - com ou sem acordo ortográfico. E há muitos leitores míopes e dos outros que dependem de nós, para já não referir muitos futuros tradutores.

(*) Nascido em 1976, formou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos portugueses e ingleses pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalhou como assistente editorial na Vega e, posteriormente, preparou projectos de relançamento editorial para a Civilização e Estúdios Cor. Em 2003, com Diogo Madre Deus, fundou a Cavalo de Ferro. Actualmente, é Director Editorial do Grupo Fundação Agostinho Fernandes para as áreas de Ensaio, Poesia e Ficção.
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