O artigo de Hugo Xavier sobre traduções (ver aqui) suscitou uma reacção de Jorge Palinho, que reproduzimos abaixo e que, por sua vez, suscitou nova réplica de Hugo Xavier.
Os dois textos são publicados abaixo.
Comentário de Jorge Palinhos
«Caro Hugo Xavier,
Parece-me que o seu texto passa ao lado de quase tudo o que é importante na questão. Sim, há muitas traduções más. Tal como, vê-se no exemplo que dá, há muitas revisões e edições más.
Mas do que se esquece é que a tradução é um trabalho quase tão complicado e moroso como o da própria escrita, pois exige a recriação de um texto estrangeiro como se tivesse sido escrito na nossa língua, mas sem perder a voz do autor original. Tarefa, no mínimo, esquizofrénica.
E, além de difícil, é um trabalho mal pago. Comecei a fazer tradução de livros há quase 10 anos e nesse período de tempo, mesmo que o preço do café tenha duplicado, o preço da tradução por página de 1800 caracteres quase não mudou.
Um tradutor de textos técnicos tem menos trabalho, mas ganha o dobro ou triplo do que ganharia a traduzir literatura. Se eu me tivesse dedicado a fazer traduções de manuais de equipamento mecânico ou electrónico, provavelmente, já teria morrido de tédio, mas teria morrido de tédio com uma conta bancária bastante mais abonada do que a actual.
E esse baixo custo das traduções é algo que grande parte das editoras pratica conscientemente.
Há uns anos fiz um teste de tradução para uma conhecida editora. Fui contactado por uma simpática representante desta que me informou que tinham gostado muito do meu teste mas que quase teve um ataque cardíaco quando eu lhe disse os preços que costumava praticar. Como a editora tinha um catálogo de que eu gostava, aceitei baixar um pouco o preço, mas mesmo assim nunca mais tive notícias da senhora. Suponho que tenham optado por outro tradutor com um teste mais fraco mas um preçário mais agradável.
E daí deriva tudo o resto. Os preços baixos implicam que a maioria dos tradutores tenha de acumular trabalho ou complementar as traduções com empregos fixos, tendo menos tempo para fazer o trabalho em condições.
E o Hugo pode acreditar que eu teria todo o prazer em dedicar-me, no mínimo, durante 9 meses a cada tradução até ficarem imaculadas.
Excepto que raramente me dão tais prazos (o prazo normal é “ontem”), e, mesmo quando dão, se não fizer outras traduções ao mesmo tempo, arrisco-me a morrer à fome, o que, suponho que o Hugo concorda, é pouco mais interessante do que a morte por tédio.
Por isso a solução é trabalhar muitas horas e beber muitos cafés (caríssimos) para poder cumprir prazos e apresentar traduções que não me envergonhe que tenham o meu nome (muitas vezes apenas) na ficha técnica.
Por isso, caro Hugo Xavier, parece-me que mais interessante do que culpar toda uma geração e classe pelo (mau) trabalho que é feito, seria perguntar se os melhores profissionais dessa classe e geração têm condições para fazer o seu trabalho bem feito.
Jorge Palinhos»
Comentário ao comentário de Jorge Palinhos, por Hugo Xavier
«Caro Jorge Palinhos,
Compreendo o que me diz, mas repare, essa é a questão que sempre discuti com os meus tradutores. Eu próprio fiz já algumas traduções e sei o quão mal pagas são.
Agora, será que o Jorge sabe porque é que são tão mal pagas?
Já neste blogue tive oportunidade de sobre isso escrever.
São mal pagas porque há poucos leitores. Se em Portugal se lesse habitualmente e não tivéssemos uma taxa de leitura baixíssima, as editoras não fariam livros com tiragens de 1500 exemplares (a média é de 1200). Mas em tiragens de 1200 ou 1500 exemplares, se pagássemos as traduções como deveriam ser pagas (15 a 20 € por 1800 caracteres), um livro de 200 páginas com direitos de autor aparecia cá fora a cerca de 25 ou 30 € (e nem estou a falar de se pagar a revisão ou o design como deveria ser pago). E depois ninguém comprava o livro, a editora falia e não havia mais trabalho para o tradutor.
Essa é a triste realidade. Queixarmo-nos da situação é fácil, aceitar a realidade é outra coisa. E a realidade é esta: salvo os tradutores e editores de best-sellers, os restantes editores e tradutores que queiram trabalhar em boas obras estão a fazer isto com sacrifícios e por gosto.
Quanto aos prazos, por aí lamento que tenha trabalhado com editoras que continuam a praticar sistemas desses. Na Cavalo de Ferro, salvo em casos muito particulares em que avisámos o autor da brevidade de prazo, a maior parte dos prazos de tradução é discutida e está sujeita à proposta que o tradutor nos faz. Os 9 meses de gestação são impossíveis a não ser que estejamos a publicar um clássico de dimensão considerável. Mas 6 meses já aconteceu.
Por último, queria dizer algo que já repeti centenas de vezes em várias respostas que tive de dar a textos meus publicados neste blogue: acho que as pessoas já não conseguem fazer interpretação conveniente de textos.
Onde é que no meu texto está que eu ataco toda uma classe? Ao que me lembro falei de uma maioria. Não acredito que seja novidade para o Jorge o que vou dizer: há alguns anos tínhamos em Portugal menos de 1000 tradutores. Hoje em dia recebo diáriamente 2 a 3 CV de tradutores.
Há formação para uma área que não tem necessidade de tantos tradutores. Em compensação, os jovens tradutores não abrem os olhos e percebem que se querem trabalhar nessa área têm de procurar alternativas de línguas.
E depois o Jorge não me responde à grande pergunta que coloco: como é que pode haver tanta gente interessada em fazer tradução literária (conforme número de CV que recebo e posso comprovar) e não tem quaisquer bases de leitura?
E essa sim foi a minha grande questão, Jorge. Eu não quis de forma alguma abordar a questão do mau pagamento de traduções, que aliás já creio que há uns anos abordei neste mesmo blogue, mas sim da formação inadequada e da falta de brio e rigor profissional de um mar de tradutores jovens inadequadamente preparados para o mercado de trabalho.
Repare, critico isso da mesma forma como, e quem me conhece sabe-o, critiquei sempre que muitos dos meus colegas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estivessem lá meramente para evitar a matemática. Pessoas como essas acabam cursos sem a noção do que querem fazer e sem habilitações para o fazerem, mas num país em que o facilitismo é a regra, que outra coisa seria de esperar?
Da mesma forma digo que deveriam existir menos editoras. O mercado está superpovoado de edições que se devoram umas às outras... e temos 100 000 grandes leitores - aqueles que lêem mais de 10 livros por ano (em França essa categoria máxima corresponde aos leitores que lêem mais de 10 livros por mês)...
Agora imagine o Jorge, se o decreto lei europeu que a França e a Alemanha pretendem fazer passar, para que as traduções sejam pagas como direitos de autor, avança... Acho que em Portugal ficaremos apenas com os tradutores do Dan Brown ou do Harry Potter. Essa também é uma questão que, para si, deve parecer importante, como para mim. Contudo, não a abordei porque não estava a falar disso, e isso é afinal o privilégio de um texto de opinião.
Hugo Xavier»
segunda-feira, 2 de março de 2009
A traição das traduções - a posição de Jorge Palinhos e comentário de Hugo Xavier
Postado por Booktailors - Consultores Editoriais às 16:00
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