sexta-feira, 21 de maio de 2010

Opinião: O futuro dos livros e das bibliotecas (Parte III), por Carlos Fiolhais

O FUTURO DOS LIVROS E DAS BIBLIOTECAS (parte III),
por Carlos Fiolhais (*)

N. E.: texto publicado originalmente no blogue De rerum natura
, correspondente à intervenção de 15 de Abril no Colóquio sobre Gestão Editorial, organizado pela Imprensa da Universidade de Coimbra:


Claro que uma coisa é a existência digital na Internet e outra o respectivo acesso. Estar na Internet não significa que seja grátis, e estou convencido que terá de haver cada vez mais pagamento de custos de acesso ao digital que não seja simplesmente a favor da operadora telefónica: também pagamos a electricidade não só a quem a transporta mas também e principalmente a quem a produz. Sei bem que esta questão do copyright é polémica — é conhecida a oposição aos projectos da Google de alguns editores e autores, mas estou em crer que é necessário encontrar um novo equilíbrio entre o necessário reconhecimento da criatividade e o direito da comunidade ao acesso ao património. Um editorial recente da revista The Economist, por ocasião dos 300 anos da lei do copyright britânica, vai precisamente nesse sentido, lembrando que os prazos de reivindicação de direitos eram à época muito menores do que hoje. Mas não é fácil concretizar um esquema justo de pagamento, sem ao mesmo tempo permitir a liberalização da cópia, que a tecnologia tornou demasiado fácil.

Com o cut and paste indiscriminado feito a partir da Internet, ao qual dificilmente será posto cobro (a escola portuguesa não só não o enfrenta como até o incentiva!), o papel das bibliotecas terá de ser sempre o da salvaguarda das obras e dos autores originais, para além de ajudar na educação que cada vez se revela mais necessária para encontrar o ouro no meio de muita, mesmo muita ganga. Há ideias novas a pôr em prática. Uma delas é a instituição do depósito digital. O depósito legal é uma instituição em muitos países desde há muito tempo, que consiste em garantir a guarda para memória futura e acesso público de pelo menos uma cópia de uma publicação em papel (livros, revistas, jornais, etc.). A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a mais antiga biblioteca pública portuguesa (em 2013 fará 500 anos), é beneficiária desde há quase um século do depósito legal. Ora, parece que ainda ninguém se lembrou que hoje todos os livros, revistas ou jornais que se imprimem começam por existir em forma digital, pelo que, se o que está em jogo é a preservação e o acesso aos conteúdos, faz todo o sentido iniciar um depósito electrónico generalizado, de forma a que não prejudique os direitos de autor. Não se trata apenas de fazer cópias digitais da Internet, ou de domínios dela (o que decerto é não só viável como útil), pois há muita informação, digital ou não, que não está na Internet. Mas sim de criar uma nova biblioteca, uma biblioteca mundial, de onde pudessem ser feitas consultas e transferências, de uma maneira que há obviamente que regular. Os direitos de autor deveriam continuar a ser reconhecidos e os autores devidamente recompensados. O que não faz muito sentido, na minha opinião, é criar um documento digital, materializá-lo em papel e, mais tarde, se se quer um documento em forma digital, ter de o digitalizar. O depósito legal foi uma criação dos estados, naturalmente ciosos das suas línguas e das suas culturas. É por isso que hoje há grandes bibliotecas nacionais, como a do Congresso dos Estados Unidos, a maior do mundo, e não há grandes bibliotecas internacionais. Mas poderia haver um depósito digital verdadeiramente internacional, uma biblioteca mundial, que poderia chamar-se «Biblioteca de Babel». No mundo global em que vivemos, um depósito digital não pode nem deve ser apenas nacional. O Projecto Gutenberg de disponibilização on-line de obras que não têm direitos de autor aponta nesse sentido. O open access, o movimento em curso no sentido de liberalizar o acesso a criações científicas (e que está na base do «Estudo Geral»), vai também nesse sentido, o de facultar a todos o máximo do saber humano, pois, como disse o astrofísico norte-americano Carl Sagan, o «destino do homem é o conhecimento». A «Biblioteca de Babel» inteiramente digital é uma utopia ao nosso alcance, pois é viável tecnologicamente, assim haja vontade política para isso. Será um projecto mais para uma organização internacional como as Nações Unidas do que para uma empresa multinacional, como a Google, mas poder-se-á pensar numa parceria entre público e privados. A ideia da «Biblioteca de Babel» não é original, pois já o escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu um conto com esse mesmo título, com a diferença de que a biblioteca borgiana era excessivamente grande: tinha tudo o que já se escreveu e se pode algum dia vir a escrever, em qualquer língua do mundo, quando eu me contentaria com tudo o que já algum dia se escreveu, de forma organizada e para ser divulgado. É difícil conceber a mudança que poderia resultar, nas nossas vidas, do facto de termos acesso a esse repositório imenso de saber e de sonho, de conhecimento e de imaginação!

Lembro que a história de Babel vem na Bíblia, no Génesis: os homens, que formavam uma comunidade de uma só língua, tentaram fazer um edifício que chegasse a Deus, e este, furioso, destruiu-o dispersando a humanidade em comunidades de várias línguas. A «Biblioteca de Babel», na linha do que disse Keith Richards, é uma das formas, talvez a melhor forma, de o homem, tal como no mito bíblico, aspirar à omnisciência, isto é, aspirar a uma das qualidades de Deus.

(*) Nasceu em Lisboa em 1956. Licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra em 1978 e doutorou-se em Física Teórica na Universidade Goethe, em Frankfurt/Main, Alemanha, em 1982. É professor catedrático no Departamento de Física da Universidade de Coimbra desde 2000. Foi professor convidado em universidades de Portugal, Brasil e Estados Unidos.
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