UMA PROFISSÃO DE RISCO NO SÉCULO XXI (parte V),
por Francisco Vale (*)
N. E.: Publicado originalmente no livro Autores, Editores e Leitores (Relógio D’Água), editado em Novembro de 2009.
[Parte I]
[Parte II]
[Parte III]
[Parte IV]
Riscos para os autores
Num certo sentido, pode dizer-se que agora os riscos vão ser corridos tanto pelos editores como pelos autores, cuja relação com os leitores atravessa um processo de mudança num ciberespaço onde é difícil acautelar os direitos, o estatuto criativo e mesmo a integridade das obras.
Ao longo de décadas, os autores foram postos em causa a nível teórico pelo desconstrucionismo. O digital tende agora a esbater a barreira selectiva do custo da impressão em papel, daí resultando uma avalanche de livros que ameaça submergir os autores realmente criativos. Além disso, estes podem ver as suas obras reelaboradas num processo em que o leitor deixa de ser alguém que responde à actividade singular do escritor para se assumir como participante num agregado em que todos são, mais ou menos, colaboradores em regime de hipertexto.
O «borgiano» projecto inicial do Google, destinado a resolver o seu problema de conteúdos digitalizando todas as bibliotecas, alarga este risco à escala do planeta, por maior que seja a vantagem de colocar qualquer livro a disposição do mais remoto dos leitores.
Os editores e escritores têm, em certos aspectos, interesses diferentes. Mas da sua colaboração depende, em boa parte, que tais riscos sejam evitados e que as novas possibilidades de contacto com os leitores se desenvolvam de um modo que impeça a diluição do papel criativo do autor.
A Relógio D’Água e os novos tempos
Editar surge como uma profissão de risco neste início de século, quando se ignora ainda onde vão ficar as fronteiras do livro tipográfico passada esta segunda vaga do digital.
Cada vez mais a razão de ser de um editor está na sua capacidade de escolha, de ir construindo um catálogo de referência que atraia os autores e inspire confiança aos leitores. O resto é a agilidade de uma estrutura, o financiamento, a qualidade das traduções e revisões, o grafismo, a paginação e a promoção.
Por isso considero actual a afirmação de Jason Epstein (co-fundador da The New York Review of Books, criador da Library of America, director da Random House e precursor da venda de livros on-line), que já fizera minha mesmo antes de a ler pela primeira vez:
«A edição de livros é por natureza uma indústria artesanal, descentralizada, improvisada e pessoal; realizam-na melhor pequenos grupos de pessoas com ideias afins, consagradas à sua arte, ciosas da sua autonomia, sensíveis às necessidades dos escritores e aos diversos interesses dos leitores» (A Indústria do Livro: Passado, Presente e Futuro da Edição).
Creio que esta concepção se mantém válida, embora a paisagem editorial se possa tomar irreconhecível em poucas décadas.
A Relógio D’Água continuará tranquilamente a publicar livros em papel, um suporte que continua a ter vantagens e não está sujeito a obsolescência tecnológica. Mas prepara-se para os novos tempos, prevendo a edição digital nos contratos e os respectivos direitos, adquirindo conhecimento das linguagens informáticas adequadas e refazendo o seu site e blogue. Analisará também as diferentes plataformas para divulgação do livro digital que vão instalar-se em Portugal, privilegiando as que resultarem da conjunção de editoras, à semelhança da criada em França pela Flammarion, Seuil e Gallimard.
Mas, amanhã como ontem, o essencial continua a ser a imaginação dos autores e a existência de leitores capazes de reconhecer um bom livro, mesmo que este passe por mais metamorfoses que os seres fantásticos de Ovídio.
(*) Francisco Vale foi um dos fundadores da Relógio D’Água em 1983, sendo desde então seu responsável editorial. É autor de dois romances, Cláudia Telefonou Depois e Os Amantes Prendem nos Braços Tudo o Que lhes Dói. Traduziu obras de Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Djuna Barnes, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras, Le Clézio, Foucault, Ernesto Sabato, Javier Marías e Fernando Savater.
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