segunda-feira, 28 de junho de 2010

Opinião: Uma profissão de risco no século XXI (parte III), por Francisco Vale

UMA PROFISSÃO DE RISCO NO SÉCULO XXI (parte III),
por Francisco Vale (*)

N. E.: Publicado originalmente no livro Autores, Editores e Leitores (Relógio D’Água), editado em Novembro de 2009.

[Parte I]
[Parte II]


Um novo fôlego?

Na época do digital, o livro impresso tem os inconvenientes da sua natureza material. Exige o abate de certas espécies de árvores, causa poluição fabril, é difícil de transportar, requer espaço e é perecível.

A impressão em offset só consegue custos unitários razoáveis para tiragens elevadas. E como se publica para um mercado incerto, a sobras e pesados custos de armazenamento antecipados nos preços.

A distribuição, venda nas livrarias, devoluções e armazenagem são responsáveis por mais de 60 por cento do preço do livro. O papel e a impressão por cerca de 15 por cento. Por isso, à primeira vista tudo o condena no confronto com a «imaterialidade» dos bits.

Será o livro impresso capaz de uma flexibilidade que o torne mais concorrencial, ao mesmo tempo que preserva a sua particular relação com o leitor? Terá futuro, pelo menos nos géneros que requerem uma leitura sequencial e reflectida, como a literatura e parte dos ensaios?

A própria evolução tecnológica no fabrico de papéis e o digital oferecem novas possibilidades ao livro impresso.

Verifica-se um crescente recurso a papéis reciclados, agora com preços mais acessíveis e gamas variadas. Por outro lado, e tal como se verifica nos escritórios actuais, nada garante que a leitura digital diminua o consumo de papel. Constata-se, aliás, que muitos dos que lêem e-books adquirem depois versões impressas.

O digital pode também dar uma ajuda na redução da incerteza das tiragens e nos custos de transporte e armazenamento. A impressão digital com máquinas industriais permite já, para tiragens inferiores a 700 exemplares, custos por unidade bem inferiores aos de offset. Há vários anos que é usada para imprimir em papel géneros menos vendáveis como a poesia e o teatro ou nas reedições. A impressão a pedido é hoje corrente e em breve estará disponível em livrarias portuguesas. Para os editores, esta tecnologia tem vantagens, permitindo disponibilizar fundos esgotados e reduzir custos de transporte, já que estará acessível nos principais centros urbanos.

Finalmente, esses processos, conjugados com os e-books e vendas na Internet, vão diminuir a dependência em que editores e distribuidores se encontram das livrarias, cujas margens se tornaram excessivas. Estas vão ser forçadas a uma acelerada reconversão e, à imagem do que já fazem as Borders Books, a articular as experiências livreiras tradicionais com a criação de centros digitais (fornecendo materiais como entrevistas com os autores e chats nas suas páginas web, livros on-line e impressão a pedido).

Também os editores deverão atravessar um processo análogo, serem Janus capazes de olhar ao mesmo tempo para o futuro e o passado, conjugando a sua tradicional actividade no livro impresso com o recurso a linguagens para fornecimento de livros on-line, e-books e impressão a pedido. (A obra de José Afonso Furtado, Os Livros e as Leituras, adianta pistas interessantes nesta área.)

Se o livro impresso conseguir baixar em cerca de 20 por cento o seu preço, ser-lhe-á possível, mesmo permanecendo mais caro que o digital, manter as suas vantagens na leitura sequencial, cujo exemplo acabado, para Umberto Eco, é o «policial» (ao mesmo tempo que o digital será preponderante nas leituras selectivas de ensaios, dicionários, enciclopédias, revistas e diários generalistas).

As vantagens do livro impresso, reverso da sua fragilidade, remetem também para a sua natureza material. Esta passa pelo papel, grafismo, formato e marcas do tempo, por um relacionamento singular em contraste com a monótona uniformidade das obras digitais.

É mais fácil imaginar que nas páginas fechadas de um livro impresso, personagens como Antígona, Iago, Fabrício, Natacha, o capitão Flint, Orlando, Corto Maltese ou Herzog continuam a sua existência e esperam o leitor, do que nos píxeis do livro electrónico.

E mesmo a questão do preço não é linear, pois não se pode emprestar um livro digital como o fazemos com uma edição em papel que, além disso, dura mais que uma vida e não consome energia.

Como escreveu Walter Benjamin, em Desembrulhando a Minha Biblioteca, «a existência do coleccionador de livros tem uma relação muito enigmática com a posse» e com os «objectos em que não sublinha o seu valor funcional, utilidade, ou destino prático, antes os considerando e os valorizando como cenário, teatro do seu destino». Daí que, em sua opinião, o coleccionador «como deve ser» mantenha «a mais profunda relação com os objectos: a posse».

Existe uma apropriação do livro impresso que passa pelo olhar, o cheiro e o manuseamento, a possibilidade de o folhear num gesto rápido ou pausado e de compor estantes onde se estabelecem singulares relações de vizinhança.

Daí que uma biblioteca possa ser um cenário quotidiano, algo que se transmite, uma passagem de testemunho entre gerações.

Nada disso tem correspondência em textos digitais.

[Parte IV]
[Parte V]


(*) Francisco Vale foi um dos fundadores da Relógio D’Água em 1983, sendo desde então seu responsável editorial. É autor de dois romances, Cláudia Telefonou Depois e Os Amantes Prendem nos Braços Tudo o Que lhes Dói. Traduziu obras de Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Djuna Barnes, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras, Le Clézio, Foucault, Ernesto Sabato, Javier Marías e Fernando Savater.
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