N. E.: texto publicado originalmente no blogue O Novo Ecléctico.
INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO À POLÉMICA DOS LIVROS GUILHOTINADOS (parte II),
por Hugo Xavier (*)
[Parte 1]
c)
Há pouco tempo li aqui no blogue um texto do escritor David Machado, no qual este discutia o desgoverno do escritor/autor. Ao longo dos anos, conheci escritores que, de tão felizes por terem sido publicados, nem olhavam para os contratos que assinavam. Conheci autores presos por contratos de exclusividade que nem sabiam que os tinham assinado e autores que ficavam surpresos por as editoras invocarem este ou aquele ponto de um contrato. Percebo que nem todos os escritores tenham conhecimentos legais e jurídicos, mas o facto de não saberem recorrer a quem os tenha, quando não conseguem interpretar um texto de tal ordem, é outra grande falha.
Mencionemos, por fim, a ignorância dos escritores relativamente aos processos de mercado. Os escritores que se queixam, passados meses da saída da sua obra, de que não a encontram em lado nenhum revelam que não percebem nada do mercado editorial (não que ele funcione de forma correcta, entenda-se!). Este tipo de ignorância lembra-me os muitos colegas que tive na Faculdade de Letras e que nem sequer gostavam de ler, mas, como tinham uma aversão e bloqueio total no que tocava a números, tinham seguido aquela alternativa (são muitos desses colegas que andam a ensinar os nossos filhos a gostar de ler; alguém mais vê a perniciosidade disto tudo?).
* * *
Senhora Ministra, em Itália, há mais de 25 anos, o governo percebeu que não conseguia controlar o sector e que os editores não cumpriam leis e normas. Tomou, então, uma sábia medida: criou uma base de dados nacional através da qual, ainda hoje, qualquer editor, livreiro ou cliente descobre se um livro x está publicado, onde está disponível e em que quantidades (para além dos preços). Esta solução evita os contínuos incumprimentos no pagamento de direitos a autores nacionais e estrangeiros, pois os detentores de direitos podem sempre verificar quem deve o quê, a partir da diferença entre o número de livros injectados no mercado e os que realmente foram vendidos ao fim de determinado período; evita as trafulhices de editores e gráficas nas alegações do número real de exemplares produzidos; evita que os empregados das livrarias, mal pagos, desconhecedores, sem formação nem interesse, respondam que uma obra está esgotada sempre que não lhes apetece consultar o computador (a Bertrand é, infelizmente, especialista nesse tipo de situações), para além dos empregados que não sabem se hão-de procurar Pessoa no campo de autores nacionais ou estrangeiros (sim, já me aconteceu!).
CONCLUSÃO
A senhora ministra Gabriela Canavilhas informa agora que irá estabelecer parcerias para facilitar as doações de fundos mortos das editoras. Há quantos anos se queixam os editores desta falta de parcerias e soluções?
A senhora ministra considera esta destruição um «massacre». Seria, contudo, mais conveniente reflectir nos pontos que indiquei acima e tentar perceber porque ficam tantos livros sem compradores. Já agora, será que valerá mesmo a pena doar todos os livros sem compradores? Será que o facto de não terem encontrado público não significa que efectivamente não há público para eles? De que servem, então, as doações?
Não saberá a Senhora Ministra que a destruição de livros acaba por ser o resultado de um sector que publica sem orientações nem fiscalização? Um sector onde há mais editoras e títulos publicados do que consumidores? Um sector que, se devidamente fiscalizado e legislado, seria certamente reduzido ao número correcto de publicações e editoras, de forma a não haver necessidade de recorrer a falcatruas para sobreviver, para haver a responsabilidade de publicar com conhecimento do público e das suas necessidades e não se ser obrigado a guilhotinar excedentes?
Se todos os agentes do sector se informarem um pouco mais sobre o trabalho e as necessidades uns dos outros, se todos procurarem harmonizar a sua acção face às realidades do mercado e ao inimigo comum que é a baixíssima taxa de leitura da nossa população, talvez tudo melhore — e quem melhor do que o Ministério para encabeçar essa noção de mudança?
Quanto à destruição de livros, que é pratica comum em todo o mundo (desenganem-se ministras e autores), acontece porque é necessário que aconteça. Podem encontrar-se algumas soluções, mas não serão totais nem definitivas. A destruição de livros que muitas vezes ocorre é amiga dos autores, pois o desaparecimento de exemplares disponíveis atenua a carga de aluguer de espaço de uma editora (ou distribuidora) e, recebendo essa editora várias encomendas de um título destruído, avaliando a necessidade financeira da sua reedição (caso tenham profissionais capazes de fazer essa avaliação), fará nova edição, apresentada como novidade — o que garante maior destaque —, provavelmente recorrendo a novo design, o que também ajudará à sua venda.
Por último, queria chamar a atenção para o facto de esta polémica ter partido, de acordo com o Público, «de José da Cruz Santos, editor que trabalhou com a Asa (que foi integrada na LeYa) e que disse ao JN ter sido informado pela editora de que muitos dos títulos que se encontravam em armazém iam ser guilhotinados, sobrando apenas poucos exemplares de cada obra». Falava-se da destruição de «milhares de livros de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura». Ora, queria relembrar que muitos desses autores estão agora noutras editoras com edições novas e que, por lei, os exemplares remanescentes nas antigas editoras, em semelhantes circunstâncias, devem precisamente ser destruídos! Caso contrário, prejudica-se seriamente as editoras que fizeram novos investimentos nesses autores: imagine-se que os fundos de livros de Jorge de Sena apareciam agora no mercado, isentos da lei do preço fixo, ao preço da chuva. O que sucederia aos novos livros publicados pela Babel de Teixeira Pinto?
Se os livros, por outro lado, forem doados a bibliotecas, estamos perante mais outra perda de potenciais clientes para a editora actual, que investiu em novas edições desses autores.
Para terminar, queria perguntar quem é o senhor Cruz Santos para invocar esse tipo de situações, quando se sabe perfeitamente que, através do projecto Modo de Ler que lidera, está a relançar para o mercado, recapadas, edições ilegais (sem direitos pagos e sem cavaco aos tradutores) de livros que outrora publicou na sua editora Inova (entretanto falida). Atenção, pois não tiro o mérito ao senhor Cruz Santos, da muita coisa notável que fez pela edição em Portugal durante dezenas de anos, mas fê-lo como se fazia antigamente: olhando apenas aos aspectos legais para os quais era conveniente olhar e desleixando as questões essenciais dos direitos de autor. Mais uma vez, esse tipo de situações continua a existir sem que haja fiscalização das entidades superiores da cultura em Portugal. E, quem conheça o meio, sabe muito bem porque motivo veio trazer a público estas questões o senhor Cruz Santos, «esquecendo-se» de que a destruição dos livros não só é legal como também necessária para o equilíbrio do mercado e para bem dos autores. O mesmo não se passa no caso dos livros de Maria Teresa Horta, situação que tem origem, a meu ver, no mau funcionamento dos serviços de encomendas e informática das livrarias e distribuidoras. A situação seria facilmente resolvida de forma legal e menos dispendiosa, trazendo ao mesmo tempo maior clareza ao mercado, através de medidas mais sensíveis e informadas por parte do Ministério.
(*) Nascido em 1976, formou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalhou como assistente editorial na Vega e, posteriormente, preparou projectos de relançamento editorial para a Civilização e a Estúdios Cor. Em 2003, com Diogo Madre Deus, fundou a Cavalo de Ferro. Foi ainda director editorial do grupo Fundação Agostinho Fernandes para as áreas de Ensaio, Poesia e Ficção. É actualmente responsável pela ficção estrangeira na chancela Ulisseia, pertencente ao grupo Babel.
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