sexta-feira, 7 de maio de 2010

Opinião: Introdução e contextualização à polémica dos livros guilhotinados (parte I), por Hugo Xavier

N. E.: texto publicado originalmente no blogue O Novo Ecléctico.

INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO À POLÉMICA DOS LIVROS GUILHOTINADOS (parte I),
por Hugo Xavier (*)


Com a polémica levantada recentemente por Maria Teresa Horta, tem-se ouvido muita coisa, mas, curiosamente, os poucos editores que se pronunciaram explicaram a situação da pior forma possível.

As intervenções da senhora ministra revelaram, por sua vez, algo que já todos os que andam no mundo dos livros sabiam há algum tempo: que o distanciamento e desconhecimento do Ministério da Cultura e mesmo dos organismos que tutelam o livro e a edição (mas nada tutelam) relativamente ao negócio do livro são totais.

Esta situação de desconhecimento e, diria, intencional desligamento das obrigações perante um sector vital de transmissão da cultura — pois através do livro podem reunir-se quase todas as restantes artes e nem sequer será necessário mencionar que ele é um instrumento central no processo de divulgação cultural entre gerações — reflecte o espírito das instituições que tutelam a área cultural no nosso país: falta de profissionalismo, falta de conhecimentos de gestão no que ao negócio da cultura respeita. E foi há perto de 50 anos que a Unesco definiu o livro e outros bens como produtos culturais, ou seja, algo que deve ser pensado com base num ângulo teórico e filosófico mas que deve, igualmente, ser visto como produto comercial, pois sem um pensamento financeiro as industrias culturais só sobrevivem por milagre.

Assim, é este o retrato que podemos fazer do sector do livro no nosso país.

a)

Um grande número de editores sem conhecimentos de gestão e sem nenhum tipo de profissionalismo, que vivem de ideias quixotescas e que, quando confrontados com realidades financeiras graves, preferem recorrer à ilegalidade, não pagando a agentes do sector (tradutores, revisores, designers), ignoram pagamentos de direitos de autor (ou fazem mesmo tábua rasa deles), publicam obras estrangeiras sem sequer terem contrato ou sem pagarem os avanços de direitos, negoceiam direitos que não lhes pertencem, ignoram a legislação, continuam a publicar obras com contratos há muito caducados, etc. Ninguém regulamenta isto.

Eu, por exemplo, comecei a trabalhar, saído da universidade, numa editora que existia (e continua a existir) há 27 anos, fazendo toda a sorte de ilegalidades. Aliás, num catálogo de quase 500 títulos, se houvesse algum que não arrastasse consigo uma qualquer ilegalidade ou falta de pagamento, ficaria surpreendido.

Muitos editores queixam-se dos elevadíssimos avanços de direitos solicitados por editoras e agências internacionais. Já tive oportunidade de sondar muitas dessas editoras e agências, que me informaram que a imagem dos editores portugueses, enquanto péssimos pagadores e fazedores de edições ilegais, é tão internacionalmente famosa que é esse o mecanismo possível para que possam proteger, dentro do razoável, os direitos dos autores que representam.

b)

Mas a falta de profissionalismo continua. Uma das coisas que tenho vindo a apontar ao longo dos anos é o total desconhecimento da maioria dos agentes do mercado editorial em relação ao trabalho uns dos outros: editores que desconhecem os problemas das gráficas, gráficos que não sabem os problemas das livrarias, tradutores que não conhecem as dificuldades dos editores... A lista é extensa, e, no entanto, todos se queixam sem tentarem saber motivos. Já nem menciono um ministério da Cultura que voga ao sabor das marés, sem conhecer um milionésimo do sector — não intervindo, não fiscalizando e não legislando (nem através das sub-estruturas criadas precisamente para esse efeito).

A título exemplificativo, há uns anos descobri que o apoio para a divulgação de obras de uma cultura europeia noutra cultura europeia, atribuído pelo programa europeu Cultural 2000, era canalizado entre nós para apoio à publicação de obras de autores africanos.

Sempre que falava com um novo tradutor ou revisor e fazia um retrato da situação da edição e do livro em questão, explicando por que motivo não podia pagar mais, percebia que mesmo profissionais com mais de 40 anos de profissão nunca tinham ouvido sequer como funcionava a distribuição de custos da feitura de um livro.

Li artigos em blogues nos quais se alegava que os únicos profissionais do sector do livro que arriscavam alguma coisa eram os livreiros.

Enfim, a lista é extensa e não admira que um sector que tem de combater a crescente falta de leitores (vendem-se ligeiramente mais livros mas trata-se sobretudo de uma questão macroeconómica e refere-se particularmente a livros técnicos ou de estudo; além disso, o livro continua a ser dos presentes de prestígio mais baratos) nunca se tenha unido. Essa união não agrada a muitos, que preferem manter as trevas em torno das suas acções, e incomoda muitos outros, que preferem continuar deplorando orgulhosamente a decadência cultural do país.

Queria ainda, neste ponto, reforçar a ausência de legislação comercial e a pouca fiscalização existente. Os modelos são desadequados e poucos os cumprem. E nem falemos da lei do preço fixo, que acho ser das coisas mais idióticas jamais criadas, sobretudo num mercado onde a fiscalização é o que é.

[Continua]

(*) Nascido em 1976, formou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalhou como assistente editorial na Vega e, posteriormente, preparou projectos de relançamento editorial para a Civilização e a Estúdios Cor. Em 2003, com Diogo Madre Deus, fundou a Cavalo de Ferro. Foi ainda director editorial do grupo Fundação Agostinho Fernandes para as áreas de Ensaio, Poesia e Ficção. É actualmente responsável pela ficção estrangeira na chancela Ulisseia, pertencente ao grupo Babel.
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