MERCADOS E FEIRAS:
A INSERÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO (parte II),
por Maria do Rosário Pedreira (*)
[Parte 1]
Em 1996, quando começámos a preparar a programação de Portugal como país convidado da FILF, demo-nos conta de que a literatura portuguesa clássica não estava praticamente traduzida; e de que a contemporânea tinha começado por ser traduzida e difundida no Leste da Europa, onde os escritores perseguidos pelo regime, muitos deles militantes comunistas, tinham conseguido criar uma rede de contactos nos países do Pacto de Varsóvia, mas nem sequer aí eram muito lidos. Os outros tinham um ou outro título traduzido em países da União Europeia, mas raramente as editoras que os tinham levado à estampa prosseguiam a edição da obra, se esse primeiro livro não tivesse vendas significativas. Muitas editoras estrangeiras procuravam um título em português, e apenas um, por terem espaço no seu catálogo para um livro de uma língua estranha, exótica, mas ainda assim preferiam claramente um escritor africano de expressão portuguesa, porque aí o exotismo lhes parecia mais real. Enfim, a sensação era a de que tínhamos uma língua minoritária e de que tudo estava por fazer.
Com uma verba do Estado português excepcionalmente generosa, o trabalho foi feito, julgo que com eficiência. Não o digo por ter integrado a equipa que o realizou, mas porque ainda hoje vários países convidados da FILF nos pedem conselhos, dizendo que os alemães dão sempre Portugal como exemplo de uma operação francamente bem-sucedida. Nada se teria feito sem o dinheiro, sublinho, e ele permitiu levar ao certame mais importante do mundo em termos editoriais quase uma centena de autores lusófonos dos quatro cantos do mundo e ao mesmo tempo mostrar na Alemanha — não só aos alemães, mas também a todos os estrangeiros que ali vão para a Feira — a arte, a arquitectura, a música, a gastronomia, uma cultura de qualidade que os portugueses ainda não tinham exportado em bloco. Simultaneamente, criou-se um subsídio para os editores estrangeiros que quisessem traduzir autores portugueses, uma ajuda que se revelou fundamental para a inserção da nossa literatura no mundo.
Os efeitos dessa iniciativa de 1997 fizeram-se sentir rapidamente. O número de traduções decuplicou em poucos anos, ajudando a firmar uma literatura europeia algo periférica e bem assim autores de Angola, Moçambique e Cabo Verde, cujas literaturas ainda não se elevaram ao estatuto de sistemas literários independentes, até porque a língua portuguesa nesses países não é exclusiva.
Em 1998, José Saramago ganhou o Prémio Nobel da Literatura, e tê-lo-ia ganho mais tarde ou mais cedo, mas a visibilidade do evento de Frankfurt pode ter ajudado Estocolmo a pensar no autor português naquele ano específico. Nos anos seguintes, Portugal foi o país convidado da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, do Salão do Livro de Paris e da Feira do Livro de Genebra. Foi, pois, possível prolongar a «operação de charme» por vários anos e convocar novos públicos para a literatura de língua portuguesa. Os autores que começaram a publicar em 2000 tiveram a vida muito facilitada pelo trabalho anterior, e alguns deles estão hoje traduzidos em mais de 20 línguas, incluindo o inglês (nas edições inglesa e americana, que, como todos sabemos, são dificílimas de conseguir).
Mas também o mercado do livro mudou profundamente na última década. Com a compra maciça de editoras por grandes grupos multinacionais, a edição assumiu-se recentemente como uma indústria, que já não tem o autor como centro, mas o leitor — que é, na verdade, o consumidor final e aquele que dita regras e tendências. Nesta conjuntura, os editores perderam independência e as editoras perderam identidade, mas o autor pode sair beneficiado por estar num grupo multinacional, já que as suas obras podem ser mais rapidamente publicadas por editoras que o mesmo grupo a que pertence a sua editora original detenha noutros países. As mudanças no mercado geraram, porém, um novo paradigma de escritor: um escritor é hoje um profissional da escrita quando antes era quase sempre um profissional de outra área que se dedicava à escrita nas horas vagas. E, como profissional, tem de mostrar-se ao seu público e deslocar-se a festivais, bibliotecas, livrarias e universidades. Neste ponto específico, os festivais de escritores, mais íntimos e menos mercantilistas do que as feiras, criam uma teia de relações fundamental na internacionalização da obra de um autor. Num só encontro de poesia, numa pequena cidade do Sul de França, consegui, sem nada ter feito para isso senão ler, que os meus poemas fossem traduzidos e publicados em revistas literárias, antologias ou volumes autónomos na Grécia, em França, em Itália, em Espanha, na Eslovénia e até em catalão, numa editora das Ilhas Baleares, com a vantagem de muitas dessas traduções terem sido realizadas por poetas e em permanente diálogo e troca de impressões. Estes festivais, onde muitos escritores de nacionalidades diferentes se tornam amigos, facilitam igualmente a recomendação para bolsas ou residências literárias, financiadas pelos países de acolhimento ou pelos países visitantes, onde às vezes os autores são descobertos por um agente literário que os retira do anonimato internacional. Os leitorados do Instituto Camões espalhados pelo mundo, com ligações às universidades locais e aos estudantes de Português no estrangeiro, têm também um papel preponderante na internacionalização de um escritor, sendo o Estado quem financia as viagens e outras despesas de deslocação.
Infelizmente, as crises também se internacionalizam e as torneiras fecham-se. Quase sempre, a cultura é a primeira a sofrer as consequências da seca. Um trabalho de anos, concertado, pode tornar-se praticamente inútil se não for feito de forma continuada, e hoje sinto que corremos esse risco. Além disso, em Portugal somos apenas dez milhões de habitantes — e dez milhões de habitantes no sistema mundial equivale a dizer que não temos massa crítica suficiente para nos afirmarmos. Se nunca fomos especialmente afirmativos, se ainda hoje vivemos à sombra das glórias dos Descobrimentos, num momento de crise internacional como o que atravessamos teremos uma dificuldade acrescida em sê-lo.
Tenho, pois, a noção de que, na questão particular da internacionalização da língua, são os outros países lusófonos, com um número de falantes de português muito superior ao nosso, que têm de tomar a dianteira. Mais do que todos, o Brasil, pois é aquele que se encontra em desenvolvimento mais acelerado e, simultaneamente, o único que tem o português como língua exclusiva e um sistema literário independente. Creio, aliás, que, ao ratificar o Acordo Ortográfico — ainda antes de saber se Angola ou Moçambique o fariam —, foi isto mesmo que o Estado português quis dizer ao Brasil, que o grande exportador da língua portuguesa está agora, decididamente, do outro lado do Atlântico. Custa-nos muito reduzirmo-nos à nossa insignificância; mas, se até o fado, que é a canção mais genuinamente portuguesa, tem raízes no Brasil (e por isso é tão bela), será que podia ser de outra maneira?
(*) Maria do Rosário Pedreira é editora e escritora. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, ingressou na carreira editorial em 1987, sendo actualmente editora do Grupo LeYa. É autora de livros de poesia, ficção e literatura infanto-juvenil.
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