segunda-feira, 26 de abril de 2010

Opinião: Mercados e feiras - A inserção da língua portuguesa no mundo (parte I), por Maria do Rosário Pedreira

MERCADOS E FEIRAS:
A INSERÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO (parte I),
por Maria do Rosário Pedreira (*)

Fui recentemente convidada pela CPLP para uma conferência internacional em Brasília sobre o futuro da língua portuguesa no mundo, tendo-me sido pedido que me debruçasse sobre o tema que dá título a esta crónica. O convite teve certamente por base a minha actividade profissional: trabalho na edição há mais de 20 anos e, nos últimos dez, tenho-me dedicado especialmente à descoberta e publicação de autores de língua portuguesa, alguns dos quais traduzidos em várias línguas — ou seja, «inseridos no mundo»; e sou, por inerência das minhas funções, visita regular de feiras internacionais do livro. Como autora, estou igualmente familiarizada com os festivais internacionais de escritores e o grande contributo que estes podem dar à tradução e publicação de livros e antologias de literatura portuguesa no estrangeiro. Mas, para lá de tudo isso, partilhei uma experiência única no domínio da internacionalização das literaturas lusógrafas, pois integrei a equipa que organizou a programação de Portugal como país convidado da Feira Internacional do Livro de Frankfurt (FILF) em 1997 — o ano imediatamente anterior à atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. E, no entanto, embora tenha tentado reduzir a comunicação ao âmbito da minha experiência profissional, a verdade é que não consegui escapar completamente à minha condição de simples portuguesa, algo céptica quanto à capacidade de Portugal conseguir tornar a sua língua um idioma mais relevante do que é hoje no contexto internacional. Espero, pois, que me possam perdoar uma abordagem talvez um pouco polémica quanto a este ponto particular e uma introdução para a justificar.

Nasci em 1959 num pequeno país da Europa, que então não tinha sequer nove milhões de habitantes — menos do que os que existem hoje só em São Paulo. Era um país pobre, triste e cinzento, onde, além do mar, tínhamos apenas um vizinho — a Espanha — que, curiosamente, apesar de certas afinidades, continuava a ser tratado nos manuais escolares como inimigo histórico. Estávamos ainda isolados do mundo por uma ditadura de que não podíamos evidentemente orgulhar-nos e encontrávamos consolo na vanglória de um passado com mais de quatro séculos, em que os portugueses tinham partido em naus e caravelas e levado a língua portuguesa até à Ásia, à África e à América, porque na Europa ela parecia cada vez mais enferrujada: mais de metade da população portuguesa era analfabeta e, como tal, não podia usar todos os recursos que uma língua oferece; e a outra metade também não podia falar nem escrever livremente, sob a ameaça do lápis azul da censura e da perseguição política. Ora, num país que não se sabe expressar ou que tem medo de se expressar, a língua está sempre em segundo plano.

Nesse tempo, ao contrário do que acontecera com os nossos gloriosos avós (os grandes exportadores da língua portuguesa), também quase não viajávamos — o Presidente do Conselho, para dar o exemplo, deslocara-se uma vez a Madrid (e foi, ao que parece, a sua única viagem fora de Portugal); e aqueles que saíam do país faziam-no obrigados pelas piores circunstâncias — eram os pobres que emigravam para a França, a Alemanha e a Suíça, onde esqueciam rapidamente a sua língua para falarem a dos outros; ou os intelectuais que se exilavam ou eram exilados no estrangeiro, mas cujas obras só chegavam a Portugal em pequeníssimas redes clandestinas.

Não existe prisioneiro que não sonhe com a liberdade. E, portanto, no Portugal da minha infância, sobrevivíamos entre a saudade de um tempo que não tínhamos vivido e o desejo de um tempo que ansiávamos viver e no qual pudéssemos ser mais cosmopolitas, mais modernos e, acima de tudo, mais livres. Isso — e o facto de termos sido sempre de uma grande abertura ao Outro — fez com que passássemos a elogiar o que vinha de fora em detrimento do que possuíamos — fôssemos até um pouco subservientes com os estrangeiros (hábito que ainda não perdemos completamente) — e nos tornássemos uma espécie de esponjas, procurando absorver o que, achávamos nós, demoraria séculos a cá chegar. A França, como país livre, laico e não muito distante, instituiu-se naturalmente como primeiro modelo a seguir e, assim, o francês tornou-se língua corrente entre a população ilustrada (em minha casa, quando os meus pais não queriam que percebêssemos as conversas, falavam entre eles em francês); e, mais tarde, talvez fascinados com a vida afortunada dos tios da América — donde nem sequer podíamos importar Coca-Cola —, passámos sem problemas ao inglês. Já para não dizer que, por causa da vizinhança (não importa agora se boa ou má), muitas gerações de portugueses comunicavam desde sempre de forma satisfatória em castelhano. Foi, pois, de língua em língua que conhecemos o mundo moderno, porque a nossa nos parecia demasiado curta para o que queríamos saber. (Claro que, ao que todos dizem, temos uma aptidão extraordinária para as línguas; e o facto de os filmes e os programas de televisão terem sido sempre legendados ajudou claramente ao desenvolvimento dessa aptidão. Contudo, é talvez também um certo desdém por nós próprios, aprendido e nunca desaprendido, que ainda hoje leva qualquer português, mesmo em Portugal, a falar a língua do estrangeiro que ali trabalha ou está de visita, em vez de tentar que ele cumpra o ditado «Em Roma, sê Romano» — o que um espanhol nunca faria, muito menos em Espanha.)

É evidente que esse país onde cresci não existe, felizmente, há 35 anos. Mas, se falo dele, é apenas porque, mesmo que tudo tenha mudado, a verdade é que, no que respeita à língua, tudo está mais ou menos na mesma. Quando antes fomos exportadores, hoje somos importadores mais do que competentes. O português que se fala actualmente, sobretudo entre os jovens, está cheio de palavras de outros idiomas (muitas inglesas, sobretudo as que se prendem com as novas tecnologias), tendo caído em desuso muitos vocábulos portugueses, agora substituídos por estrangeirismos. Com a descolonização, o regresso dos ex-colonos e a imigração oriunda dos países africanos de língua portuguesa, absorvemos também uma variedade de expressões africanas. Com a chegada das telenovelas brasileiras, deixámos de perguntar «Como está?» ou «Como passou?» para perguntarmos, sem excepção: «Tudo bem?» E, tendo-se invertido a situação com a nossa entrada na União Europeia — somos hoje um país de imigrantes, quando fomos durante décadas um país de emigrantes —, é bem provável que importemos ainda muito mais palavras e modos de dizer, quiçá alguns de países tão distantes como a Ucrânia. Serve isto para dizer que a atenção que Portugal deu ao seu património linguístico nunca foi, em suma, suficiente, e o facto de o melhor dicionário de língua portuguesa ter sido feito no Brasil, por António Houaiss, é prova disso mesmo, como o é também o Museu da Língua Portuguesa estar situado em São Paulo. Embora esteja consciente de que é positivo uma língua enriquecer-se quotidianamente com os contributos de outras e de vocábulos e expressões de outros países com a mesma língua, sinto que continuamos demasiado permeáveis, como se, no fundo, ainda estivéssemos isolados do mundo e a democracia não nos tivesse aberto portas e fronteiras.

Tenho, mesmo assim, a convicção de que nos resta uma saída para emendar este caminho: a literatura, importantíssimo veículo para a inserção de uma língua no mundo. E disso falarei na próxima crónica.
(*) Maria do Rosário Pedreira é editora e escritora. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, ingressou na carreira editorial em 1987, sendo actualmente editora do Grupo LeYa. É autora de livros de poesia, ficção e literatura infanto-juvenil.
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