UMA QUESTÃO DE FÉ,
por Sérgio Coelho (*)
− Sou revisor – diz o nosso linguista, tentando abrir actividade numa repartição de finanças.
− E é da CP ou da Carris?
− …
− Diga qualquer coisa, homem…
− Pronto, ponha aí de Letras.
− Ah… essa não conheço. Mas se o senhor o diz…
Deixemos para trás questões metafísicas, sobre se a profissão de revisor o será realmente ou se não consistirá sobretudo num agregado de competências aplicado a uma tarefa específica, a uma determinada fase de um projecto editorial («revisor de vocação é fenómeno desconhecido», diria o nosso colega da História do Cerco de Lisboa).
Não falemos para já do quão mais saboroso é regar a nossa boa posta de bacalhau com um belo e espesso azeite, em lugar de um mais vulgar óleo de azeitonas; de como o nosso automóvel prefere a gasolina à essência; do tão mais descansado que ficamos ao sabermos que a civilização em que vivemos anda sobre rodas, em lugar de o fazer sobre ruas…
Ignoremos a particularidade de, tantas vezes, certamente por omissão ou esquecimento, o nosso nome não ser incluído na ficha técnica; o de desempenharmos uma actividade com um dos valores/hora mais baixos do mercado profissional português; o de nem sequer nos oferecerem um exemplar das obras que revemos; o de…
Detenhamo-nos, isso sim, numa outra preocupação bem mais concreta. Na necessidade de, a cada passo de um trabalho de revisão, sabermos tão rigorosamente como possível o âmbito de intervenção requerido, as especificidades linguísticas e sintácticas da obra em causa, o máximo de informação sobre o público a que a obra se destina, os critérios originais do autor ou do tradutor, a fase do ciclo de produção em que a obra se encontra e as especificidades inerentes.
Muitas vezes, tais indicações pululam dispersas, na melhor das hipóteses em livros de estilo ou cadernos de normas, por vezes em e-mails ou folhas de rosto, quando não nas margens de jogos de provas.
Dos tipos de revisão…
Ora, rever não é apenas reler e muito menos caçar gralhas. Na verdade, rever é uma actividade que assume dimensões diferentes, com características e exigências distintas. Poderíamos, assim, falar de diferentes tipos e níveis de revisão.
Uma operação basilar passa pela normalização, que consistiria na detecção de situações recorrentes, na formatação tipográfica tendo em conta os critérios definidos pela editora (versaletes, aspas, numeração, parêntesis…). Usual e preferencialmente feita em ficheiro digital, contudo, deve ser considerada um conceito norteante em todo o ciclo de revisão.
Já a revisão linguística pressupõe a correcção de situações linguísticas, como sejam incorrecções gramaticais, concordâncias, gralhas, normalização de construções frásicas e vocabulares.
Quanto ao que se usa designar por revisão tipográfica, e aqui já, predominantemente, no domínio das provas em papel, para além da caça à gralha implícita e da já referida normalização, pressupõe a verificação de situações estruturais da obra, como seja a divisão das secções que a constituem ou a estruturação de elementos gráficos. Exemplos de situações nas quais o revisor deverá depositar a maior atenção são as notas de rodapé (chamada e resposta), as referências bibliográficas (em miolo e em secção bibliográfica) e as regras e convenções definidas para a translineação (por exemplo, evitar hifenização em final de página).
Num âmbito mais alargado, poderemos ser chamados a intervir ao nível da linguagem. Normalmente, esta necessidade coloca-se quando urge adaptar a linguagem do original a um público final específico. É o que sucede, por exemplo, numa obra de divulgação histórica destinada a um público infantil.
Já por revisão literária entenderíamos uma intervenção ao nível da estrutura narrativa e linguística do texto, tendo sempre como fiel da balança o posicionamento pretendido para a obra.
Resolvidos estes problemas, urge ainda, quando aplicável, determinar o rigor dos conteúdos veiculados. Uma revisão deste teor poderá justificar-se tanto pela necessidade de adequação do conteúdo ao público-alvo, quanto pela exigência de fidedignidade requerida pelo tipo de obra em causa.
E quanto ao editing? Este é, porventura, um dos conceitos mais difíceis de enquadrar no ciclo de pré-impressão. Não têm esse problema os anglo-saxónicos, cujo editor tem, precisamente, o editing como tarefa suprema. Sendo sumários, e sem entrarmos em elaborações que, mais do que resolver problemas preexistentes, se limitam a criar novos, diríamos que pressupõe interpretação mais profunda dos conteúdos originais. Assim, poderá ser requerida a selecção de novos conteúdos ou a eliminação ou adaptação de outros. Por vezes, poderá estar mesmo em causa a reescrita do original ou de partes deste. A este respeito, e enquanto verdadeira síntese prática daquilo que deve ser um bom editing, aconselho vivamente a leitura da crónica Memórias Internas da Ditadura, de José Vegar, já publicada no Blogtailors.
… aos níveis de abordagem
Em jeito de síntese, e porque o levantamento das necessidades de revisão de uma obra poderá não nos ser apresentado de forma linear, poderíamos falar de dois níveis de abordagem fundamentais:
Abordagens restritivas: competirá ao revisor efectuar emendas preponderantemente tipográficas (gralhas, translineações, normalização de situações/elementos gráficos e de paginação, sugestão de melhoramentos gráficos) e linguísticas (correcção gramatical, frásica e contextual);
Abordagens extensivas: competirá ao revisor, para além de atentar às questões acima mencionadas, proceder a um melhoramento linguístico mais acentuado (revisão de pendor literário) ou a uma verificação do rigor do conteúdo (revisão de pendor científico); poderá ser também requerida uma adequação da linguagem ao público-alvo, esteja em causa uma faixa etária ou um segmento temático específico. Tal intervenção poderá justificar-se por necessidade de adaptação da linguagem ao público leitor (a nível etário, geográfico, cultural ou terminológico), de adequação científica ou mesmo adaptação contextual.
Acima de tudo, todas estas são informações que o revisor deverá procurar obter antes de se debruçar sobre um trabalho, as mesmas que o editor ou o coordenador editorial deve procurar sistematizar e fornecer-lhe.
Para outras calendas ficam as questões de abertura. Umas quantas frustrações, próprias e de outrens inúmeros, que levam alguns a concluir que isso da revisão é quase uma questão de fé, que só com a crença disto se pode fazer vida. Que o «tornar a ver» etimológico, em busca do quase mitificado sentido original do texto, em tudo se assemelha à «re-ligação» do homem a Deus, metáfora que peca por hiperbólica.
E há aqueles que defendem que o amor ao livro ou à língua «tudo sofre, tudo crê, tudo suporta». Que afirmam que o revisor é o seu próprio meta-leitor. Um idealista concreto. E isso muda tudo. «O Mais que isto é Jesus Cristo.»
(*) Com formação superior em Comunicação Social, Sérgio Coelho iniciou o seu percurso profissional no universo jornalístico, onde veio a exercer funções de editor e de chefe de redacção. Ingressando no mundo dos livros em 2002, de então para cá, tem exercido sobretudo funções de coordenação editorial, as mesmas que actualmente exerce na Booktailors. Frequentou a Pós-Graduação em Edição – Livros e Novos Suportes Digitais ministrada pela Universidade Católica e efectua trabalhos de tradução e revisão para diversas editoras nacionais.
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