quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Opinião: Memórias internas da ditadura, por José Vegar

N. E.: texto publicado originalmente no blogue operaçãosniper.

MEMÓRIAS INTERNAS DA DITADURA,
por José Vegar (*)

Felizmente, o autor, um quadro superior de uma das instituições mais importantes da ditadura salazarista, tinha escrito as suas memórias num computador. O texto, quando o recebemos, estava perto do caos. O testemunho tinha sido escrito ao sabor dos entusiasmos do momento do autor e, notava-se claramente, em vários períodos muito distantes entre si. O trabalho de edição obrigava à execução de algumas tarefas clássicas, e algumas outras próprias do texto entregue. Antes de mais, foi preciso ler o original e tentar encontrar um fio condutor das memórias. Esse era um dos principais problemas. O autor queria, no mesmo texto, mostrar o seu conhecimento do Estado salazarista, contar as suas experiências profissionais, partilhar o seu olhar do mundo e ajustar algumas contas pessoais, com figuras da ditadura mas também com algumas da democracia. A solução encontrada foi a de dividir as memórias em quatro partes isoladas, movimentando e recolocando porções consideráveis de texto. A partir daqui, estava criada uma base de trabalho para intervenções cirúrgicas no texto, primeiro ao nível da ordem, depois ao nível do ritmo e estilo. No primeiro caso, optou-se pela solução clássica da ordenação cronológica, primeiro, e temática, depois. A harmonização de ritmo e estilo foi mais sensível. Se, nalguns trechos, existia emoção a mais, noutros a secura de pormenores imperava. Com a colaboração do autor, fornecendo os dados, criou-se o equilíbrio desejável. O passo seguinte foi eliminar uma das falhas mais comuns das memórias: a repetição de factos e acções em pontos diferentes da narrativa. Aqui, o que é exigido é concentração, já que a repetição, por vezes, dá-se apenas ao nível de um parágrafo. O trabalho de edição passou, então, para a tarefa mais simples mas mais sensível, já que tocava em sensibilidades pessoais do autor. Na verdade, este, ao longo da sua vida, cultivou três ódios de estimação. E, com uma regularidade extraordinária, insultava as três pessoas a cada dez páginas das suas memórias. Após uma negociação intensa, foi concedida a redução da frequência de agressões. O texto ficou límpido, isto é, pronto a ser publicado.

(*) José Vegar é autor dos livros de ficção Cerco a um Duro e A Balada do Subúrbio e dos livros de não-ficção O Inimigo Sem Rosto – Fraude e Corrupção em Portugal (com Maria José Morgado) e Serviços Secretos Portugueses. Frequenta o doutoramento em Sociologia no ISCTE. Escreve nos blogues sniper e operaçãosniper.
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