QUEM TEM MEDO DAS PALAVRAS VEM ÀS CORRENTES,
por João Pombeiro (*)
Tenho com as palavras uma relação de desconfiança. A desconfiança é mútua, devo acrescentar: elas não acreditam que eu as saiba utilizar com propriedade, esmero e elegância, o que se justifica plenamente; eu, por qualquer lado e circunstância, temo pelo seu jogo duplo. Aprendi a conviver com isso. E sem cão.
Há poucos minutos, quando amarrava palavras à folha (como é possível que algumas teimem em não querer associar-se ao meu bom nome?), avisaram-me de que este texto não deveria ser (acabo de inventar) mais um daqueles exercícios, bastante gastos, de autodepreciação ou de criação de pseudofactos próprios de quem não sabe muito bem o que fazer às palavras e precisa de encher chouriços. Confesso: adoro encher chouriços porque nunca soube muito bem o que fazer com as palavras. Problema crónico, este. Por isso, quando me pedem para escrever sobre as Correntes, o medo aumenta. Não só por ser um caloiro na coisa, mas sobretudo porque, na Póvoa de Varzim, durante quatro dias, estão homens e mulheres para quem as palavras são o seu nome do meio ou, muitas vezes, o seu melhor amigo.
«Estou farto das palavras.» Não fui eu quem o disse. Estes quatro vocábulos (sinónimo que me deixa mais tranquilo…), publicados por esta ordem, foram tema de uma das mesas das Correntes de 2009, o meu ano de praxe. Carlos Pinto Coelho, para quem o céu é o limite quando se trata de associar as ditas, avisava ser um tema provocador. Exagero, caramba. Quem não está fartinho das palavras? A mesa moderada por C. P. C. (estou em condições de declarar peremptoriamente) funcionou como Prozac momentâneo. Fiquei apaziguado com o mundo durante alguns dias.
As palavras, escrevinhei eu na altura no blogue da LER, com aquele tom genérico de quem se borra de medo, justificam, só elas, a eternidade das Correntes. Das palavras que os alunos das várias escolas da Póvoa ouviram de Dulce Maria Cardoso, João Paulo Cuenca, José Luís Peixoto ou Eucanaã Ferraz; das palavras que detestam a folha em branco; das palavras impressas nos livros de Andrea Blanqué, Álvaro Uribe, Adriana Lisboa ou Héctor Abad Faciolince; das palavras que se destacam nos títulos apresentados (de António Garrido ou Juan José Millás) noite dentro, numa sala do hotel onde um dos estúpidos passatempos dos presentes é encontrar uma cadeira livre; «palavras que estão gastas arruínam casamentos e editoras», como sentenciou o escritor espanhol Victor Andresco; palavras que nos podem salvar (Rui Cardoso Martins), quando a morte aparece cobardemente; palavras que faltam quando a imaginação é torrencial (Daniel Galera); palavras que mudam (mudam mesmo) a vida das pessoas, contou Luís Fernando Veríssimo a propósito de uma das obras-primas de seu pai (Olhai os Lírios do Campo); palavras desenhadas com prazer a lápis (Almeida Faria, que um dia chegou a copiar o que aparecia no ecrã do seu computador para o papel, garantindo assim, acreditava ele, que não perdia nada do que escrevera); palavras cantadas pela moçambicana Paulina Chiziane («os meus olhos de escritor de repente disparam, alguma coisa cai, eu recolho e levo para casa. Passado um tempo, que pode ser um mês ou um ano, torna-se a minha presa, levo-a para a cozinha e preparo-a com requinte»); palavras lidas numa emocionada carta ao pai (Eduardo Bettencourt Pinto); palavras que nos guiam pelo mundo (Antonio Orlando Rodríguez só sentiu ter chegado a Alexandria quando conseguiu deitar-se na cama de Kavafis; José Mário Silva viajou até à Patagónia, com Chatwin, e a East Anglia, com Sebald, sem sair de casa); palavras encalladas (de calle), descobertas por Eloy Santos — «da impossibilidade do caminho nasce a possibilidade do relato, da narrativa»; palavras que Gonçalo M. Tavares se demora a esmiuçar, como «reparar»; palavras que levaram Xavier Queipo, poeta e escritor galego, a anunciar na Póvoa uma Constituição Europeia dos Poetas, apresentada em Bruxelas daí a poucas semanas.
Quem tem medo (mesmo das palavras) compra um cão; eu venho às Correntes. Frase estúpida, própria dos medricas, que nunca sabem como acabar o que quer que seja.
(*) João Pombeiro é editor executivo da revista LER. Anteriormente, assumiu as funções de editor da Notícias Sábado, revista de sábado do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias. Nasceu em Évora, em Agosto de 1978, mas foi em Lisboa que se licenciou em Comunicação Social, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Em 2002, ingressou na revista Grande Reportagem, onde exerceu o cargo de jornalista até 2005. Ao longo do seu percurso profissional, colaborou com diversas publicações. Publicou em 2007, pela Esfera dos Livros, uma colectânea que reúne as frases mais hilariantes dos políticos portugueses, no pós-25 de Abril e, em 2009, pela Quetzal Editores, 30 Anos de Mau Futebol, uma recolha das frases mais extravagantes do futebol português.
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.