(NÃO) HÁ LIVROS GRÁTIS,
por Nuno Quintas (*)
Porquê ler os clássicos? Em tempos de recessão, mais não seja por serem gratuitos.
Nos últimos anos, tem-se adensado o debate em torno da sobrevivência do livro, tal como o conhecemos hoje. Sem direito a Kindle (até agora), Portugal parecia passar ao lado desta transformação profunda, um facto tanto mais surpreendente quanto a vitalidade do sector editorial nos últimos anos (e o contributo inestimável de José Afonso Furtado para esta discussão). Se dúvidas persistissem, as vendas do último romance de Dan Brown, em versão e-book, e a polémica em torno do projecto de digitalização da Google, o Google Books, parecem confirmar a entrada definitiva do livro electrónico nas contas das editoras.
Mas pergunto-me frequentemente, enquanto futuro utilizador de um e-reader, porque não regressamos aos clássicos. Não pretendo aqui reacender o sempiterno debate acerca da formação do cânone. Espanta-me, contudo, que um dos maiores acervos bibliográficos disponíveis na Internet continue ignorado, entre a avalancha de novidades editoriais e a divisão da gamela dos direitos de autor. Falo do mui ignorado Projecto Gutenberg.
O projecto nasceu em 1970, quando a Web não era ainda a 2.0, com a missão de «estimular a criação e a distribuição de livros electrónicos». Uma equipa de utilizadores provenientes de todo o mundo, com as mais variadas formações e sensibilidades, toma em mãos textos digitalizados por OCR, limpa-os de erros e ruídos, formata-os e publica-os em linha. Parece simples e, na verdade, é-o, porque a paciência e a capacidade de gestão de projectos, alguns deles de grande complexidade, conta com uma experiência de décadas. Os Distributed Proofreaders, a rede de voluntários deste projecto, vão construindo pacientemente um notável acervo bibliográfico, com a dedicação de quem tem os olhos fixos no futuro.
Ora, se a leitura de texto no ecrã do computador era tudo menos prática, os e-readers alteraram radicalmente essa experiência – e só comprovam a clarividência dos mentores deste projecto. É graças a eles que podemos hoje consultar uma biblioteca virtual de obras nacionais e estrangeiras (em permanente crescimento) ou a versão electrónica do Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo.
Mas a edição electrónica não se limita a formatar texto para monitores. Na verdade, permite produzir novas cartografias textuais e revisitar obras que julgávamos conhecer de cor e salteado.
(*) Tradutor, revisor e formador. Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas e frequenta o mestrado em Edição de Texto, no âmbito do qual está a realizar um estágio na Booktailors – Consultores Editoriais. Aventurou-se durante alguns anos pelo Norte de Inglaterra e por lá deixou parte do coração. Nasceu em 1980.
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