sábado, 24 de outubro de 2009

Pré-publicação: A Dádiva, de Toni Morrison (Editorial Presença)

«Não tenhas medo. O facto de eu contar não pode magoar-te, apesar do que fiz, e prometo manter-me silenciosamente no escuro — chorando, talvez, ou vendo ocasionalmente, uma vez mais, o sangue —, mas nunca mais estenderei os meus membros para me levantar e expor os dentes. Eu explico. Podes considerar o que te digo uma confissão, se quiseres, mas uma confissão repleta de curiosidades, familiares apenas em sonhos e durante aqueles momentos em que o perfil de um cão brinca no vapor de uma chaleira. Ou quando uma boneca feita de maçaroca sentada numa prateleira não tarda a estatelar-se no canto de uma sala e o perverso de como lá foi parar é evidente. Coisas mais estranhas acontecem a toda a hora e em toda a parte. Tu sabes. Eu sei que sabes. Uma pergunta é: "Quem é o culpado?" Outra é: "Sabes interpretar?" Se uma pavoa se recusa a chocar, interpreto isso rapidamente e, podes crer, nessa noite vejo a minha mãe de mão dada com o seu filho pequeno e os meus sapatos a encher-lhe a algibeira do avental. Outros sinais exigem mais tempo para serem compreendidos. Frequentemente há demasiados sinais ou um bom presságio ensombra-se demasiado depressa. Eu separo-os e tento recordar, mas sei que me está a escapar muito, como não interpretar a cobra do jardim rastejando até acima da soleira da porta para morrer. Deixem-me começar por aquilo de que tenho a certeza.

O princípio começa pelos sapatos. Em criança, nunca me habituei a andar descalça e sempre pedi sapatos, os sapatos de toda a gente, até nos dias mais quentes. A minha mãe, a minha mãe, tem a testa franzida, está cansada daquilo a que chama as minhas manias vaidosas. Só as mulheres más usam saltos altos. "Eu sou perigosa", diz, "e traquinas", mas compadece-se e deixa-me usar os sapatos postos de parte da casa da Senhora, de biqueira pontiaguda, com um salto alto partido, o outro gasto e uma fivela no peito do pé. Como consequência disso, afirma Lina, os meus pés são inúteis, serão sempre demasiado delicados e nunca terão as solas fortes, mais resistentes do que couro, que a vida exige. Lina tem razão. Florens, diz, é 1690. Quem mais, hoje em dia, tem as mãos de uma escrava e os pés de uma dama portuguesa? Por isso, quando saio para ir ter contigo, ela e a Mistress dão-me as botas do Sir, que são próprias para um homem e não para uma rapariga. Enchem-nas de feno e oleoso folhelho de milho e dizem-me que esconda a carta dentro da minha meia — sem querer saber da coceira causada pelo lacre. Sei ler, mas não leio o que a Senhora escreve e a Lina e Sorrow não sabem ler. Mas sei o que significa para dizer a quem quer que me detenha.

A minha cabeça está oca, da confusão causada por duas coisas: desejo de ti e medo de me perder. Nada me assusta mais do que este recado e nada é mais tentador. Desde o dia em que desapareceste que sonho e maquino. Saber onde estás e como estar lá. Quero correr pela trilha entre as faias e os pinheiros brancos, mas pergunto-me para que lado? Quem mo dirá? Quem vive no ermo entre esta quinta e ti, e quem quer que seja ajudar-me-á ou far-me-á mal? E os ursos sem ossos do vale? Lembras-te? Como, ao moverem-se, as pelagens oscilam como se não houvesse nada por baixo. O seu cheiro contrariando a sua beleza, os seus olhos conhecendo-nos de quando éramos também animais. Tu a dizeres-me o motivo por que é fatal olhá-los nos olhos. Eles aproximam-se, correm para nós em busca de amor e brincadeira e nós interpretamos mal e retribuímos com medo e cólera. Também lá fazem ninho aves gigantes, maiores do que vacas, como Lina diz, e nem todos os nativos são como ela, avisa, por isso, cuidado. Uma selvagem que reza, chamam-lhe os vizinhos, porque ela vai pouco à igreja e no entanto toma banho todos os dias e os cristãos nunca. Usa brilhantes contas azuis por baixo da roupa e dança em segredo ao nascer da primeira luz, quando a lua é pequena. Mais do que temer amar ursos ou aves maiores do que vacas, temo a ínvia noite. Como, interrogo-me, posso encontrar-te no escuro? Agora, finalmente, há um caminho. Tenho ordens. Está combinado. Verei a tua boca e arrastarei os dedos para baixo. Tu repousarás de novo o queixo no meu cabelo enquanto eu respiro para o teu ombro, cadenciadamente. Sinto-me feliz por o mundo estar a abrir-se para nós e, contudo, a sua novidade faz-me tremer. Para chegar a ti tenho de deixar o único lar, as únicas pessoas que conheço.»

144 páginas. PVP 13,40.
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