segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Opinião: Ensaio & Edição (Parte I), por João Urbano

ENSAIO & EDIÇÃO (PARTE I),
por João Urbano (*)

O mundo editorial português passou, na última década, por uma completa reconfiguração, com o mercado, a economia de escala e os conglomerados a ditarem as regras. O mesmo tem vindo a ocorrer com o mundo das livrarias. Toda a indústria do livro, em suma, passou e passa ainda por uma profunda reconversão. Se, por um lado, este processo conduziu a uma democratização do acesso ao livro, os livros aproximaram-se do gosto e dos interesses de um público mais alargado, e, neste sentido, as indústrias ligadas ao livro adquiriram uma dimensão considerável, por outro lado, as pequenas livrarias e as pequenas editoras têm sido como que estranguladas neste processo e subsistem com extremas dificuldades. Ainda assim, têm aparecido novas editoras, e tem começado a surgir, mesmo que timidamente, uma nova geração de livrarias independentes, pese embora a sua pouca força negocial para poderem ter fundos editoriais ou para recusarem a lógica implacável da alta rotatividade dos livros. Em suma, são patentes dificuldades de toda a ordem: dificuldades das editoras mais pequenas em colocarem os livros nas livrarias (as distribuidoras são aqui um problema), dificuldades das livrarias independentes em não serem asfixiadas ou em prosseguirem uma estratégia própria. Este assunto seria interminável e cheio de nuances. Todavia, julgo que vivemos um momento de viragem em todo o sector ligado ao livro, e, caso o livro electrónico venha a impor-se, é todo um novo mundo que se abre e que, julgo, beneficiará a diversidade dos projectos editoriais, que escaparão aos constrangimentos criados pelas grandes editoras, distribuidoras e cadeias de livrarias.

Se posso inferir que, no âmbito da edição da ficção (romance, novela, etc.), assim como no do ensaio ligado à história e à política contemporâneas, não estamos propriamente mal, no campo do ensaio mais crítico e reflexivo sobre múltiplas áreas da cultura contemporânea, das ciências humanas à arte contemporânea, passando pela filosofia e por géneros mais híbridos, a nossa edição é deveras pobre, inconsequente e desconexa. Não vejo, da parte das editoras, nenhum interesse em pôr cá fora colecções bem desenhadas sobre o pensamento contemporâneo nas suas diversas vertentes, e muito menos qualquer colecção que reflicta sobre a arte contemporânea, quando, por exemplo, as artes plásticas em Portugal têm hoje um vigor e uma diversidade que mereciam outra atenção crítica. Os escassos projectos editoriais que o tentaram soçobraram em poucos anos ou mantêm-se sem nenhum vigor editorial, mais parecendo mortos-vivos. E isto ocorre tanto no campo das traduções de pensadores estrangeiros quanto no da promoção de pensadores e criadores locais, que não os dois ou três consagrados do costume.

Neste ponto, a situação é particularmente constrangedora. Sei bem que um dos problemas que temos é a dimensão do nosso mercado, que torna inviável ou difícil às editoras apostarem em linhas editoriais mais ousadas e consequentes no campo alargado do ensaio ou da arte contemporânea. Não é por acaso que a grande maioria das editoras emergentes se dedica quase exclusivamente à ficção. Não obstante, não vejo da parte das editoras nenhum esforço, e muito menos um rasgo, para alterar este estado de coisas. Existem, é certo, edições no campo do ensaio concebidas directamente por certos departamentos universitários, mas, na sua grande maioria, essas colecções são mal pensadas e não chegam ao mercado; por isso, revelam-se completamente inoperantes. Um caso, que nem é dos mais clamorosos, tem sido o da publicação cuidada, e a todos os títulos notável, por parte do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, de algumas das obras mais importantes de Edmund Husserl, mas que, por sua vez, têm sido pessimamente distribuídas, as que têm sorte de o ser, pelo que nos vemos obrigados a deslocar ao dito Centro, localizado na Faculdade de Letras de Lisboa, para as poder adquirir.

Por fim, o pouco que se edita no campo do ensaio não tem nenhuma repercussão nos já por si escassos, exíguos e confrangedores suplementos semanais da imprensa dedicados ao livro ou em revistas como a Ler, ou no já há muito tempo e a todos os títulos patético JL. E as revistas mais especializadas, na sua grande maioria universitárias, são desinteressantes e nunca chegam a um público leitor mais largo, mesmo que minoritário. O único exemplo que fugiu a isso foi a Revista de Comunicação e Linguagens, liderada na altura por José Bragança de Miranda, embora hoje esteja praticamente moribunda. O mesmo Bragança de Miranda desenvolveu, na década de 1990 e no princípio desta, um trabalho muito importante de direcção editorial, ligado em especial à Vega e à Século xxi. São, no entanto, muito raros os trabalhos consequentes nestas áreas. Saíram também três números da revista Intervalo, mas também esta desapareceu, tal como entraram em declínio as interessantes edições da Vendaval.

Num meio hostil ao pensamento, como é o nosso, certas formas sofisticadas, mas também elas muito frágeis e delicadas, de vida cultural encontram-se permanentemente sob a ameaça de extinção. Não peço que se montem reservas para a sua conservação, já que não passariam de pequenos desertos, com meia dúzia de roedores, apenas que se criem condições para que proliferem as estirpes menos domésticas de pensamento e linguagem.


(*) Em 2003, fundou a revista de arte e ciência Nada, da qual é coordenador. Publicou o drama poético Políbio no Jardim Metafísico (Edições Mortas, 2003). Colaborou com o colectivo Pogo Teatro, como dramaturgo e co-criador, de 1997 a 1999.
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