segunda-feira, 22 de junho de 2009

Quo vadis codex?, por Miguel Conde (parte 4/5)


O que será o livro

O livro que chegou aos nossos dias, sob a forma de codex, é por todos conhecido; mas como se define o que é um livro electrónico é motivo de ampla discussão. Para uns, é um romance escrito na Internet ou num processador de texto – ou mesmo um diário em e-mail, como diz Ormes (2001). Já Ganascia (1998) vem chamar a atenção para a própria associação de termos ser contraditória, pois livro e electrónico são duas coisas diferentes.

As perspectivas são múltiplas, há quem destaque o conteúdo ou quem dê mais peso ao meio, uns focam-se na associação ficheiro mais software, outros apenas no software.

Lynch (2001) diz que os livros digitais, como conteúdo, deveriam existir independentemente dos aparelhos que o suportam (i.e., o livro surge aqui como um conceito).

A verdade é que termos antigos sempre foram usados para novas realidades, o que não impede que estas o sejam. Todavia, se um livro é, antes de mais, uma ideia, não há necessidade de escalpelar a aparente contradição. Acreditamos que um livro electrónico, um e-book, poderá ser uma adaptação de um original em papel ou uma criação electrónica indirecta. Pode ser-se e-book por nascimento ou por naturalização. A forma que assumirá no futuro, o modelo definitivo (se vier a existir um) está ainda por definir, devido à grande variedade de software, hardware e extensões electrónicas. Pouco se sabe também sobre o que realmente se pretende obter como resultado final. E, provavelmente, o conteúdo determinará a forma, de modo a que seja melhor percepcionado pelo leitor. São esses modelos, para esses conteúdos, que prevalecerão. E enquanto a luta por aquele que será «o» formato se mantiver, a expansão do livro electrónico está ancorada em mar aberto.

A finalidade dos e-books não será substituir o livro tal como o conhecemos, mas sim expandi-lo (Furtado, 2007: 49); daí que assuma uma grande importância desenvolver um objecto físico cuja experiência permita mimar a de ter um livro nas mãos.

O livro-objecto não é colocado em causa com as opções electrónicas que têm aparecido. Outras condições técnicas poderão proporcionar o acesso a outros textos, mas, se há campo onde não poderão dominar, é no conforto e na caracterização do livro enquanto objecto. O livro beneficia de um contacto directo entre conteúdo e o seu fruidor, o que não se passa com outros produtos culturais. Deste modo, a literatura tem sido menos influenciada por outros meios de transmissão do que os catálogos ou directórios. Diferentes conteúdos implicarão diferentes modelos.

O livro arquetípico permanecerá como objecto físico e mental, e alvo de desvelo, mesmo que associado a uma elite cultural. Muitos de nós afeiçoaram-se ao objecto antes de chegar aos seus conteúdos.

No seio deste remexer tecnológico, fundamental nesta revolução, que de tão profunda se pode considerar inédita, talvez a face mais visível seja a questão do suporte. O futuro do livro passa em grande parte por aí. Porém, a forma que os textos podem assumir (muitos deles já presentes no nosso quotidiano) é central nesta discussão, pela mudança de paradigma que pode implicar, como é o caso da hipertextualidade.

O hipertexto, pelo seu carácter associativo e menos restrito, é por vezes considerado um passo libertador dos espartilhos da escrita sequencial e hierárquica. A liberdade da hipertextualidade não permite, por si só, uma melhor utilização das palavras, que, sendo de certo modo banalizadas, serão até menos cuidadas, pelo que o domínio da leitura hipertextual pode levar a uma desvalorização da palavra, a uma «desverbalização», como Furtado e Lynch chamam a atenção (Furtado, 2007: 63, 64) (Lynch, 2001).

A forma hipertextual que se afigura dominante é mais descontinuada em termos de estrutura do que conhecemos habitualmente, «é um formato para a representação não sequencial de ideias; representa a abolição da abordagem tradicional, linear da apresentação e processamento da informação» (Furtado, 2007:52). Tudo isso é uma estrutura mental, uma forma de o enquadrar, e que se demarca da forma linear presente no livro mais tradicional. A coordenação entre a integridade do livro e a mais-valia de se ver digitalizado e hipertextualizado, leva-o ao que se pode chamar de upgrade da sua existência, mas em que haverá perdas. O cruzamento de livros diversos, de diferentes partes de texto pelo leitor, cria uma unidade única, e faz do leitor, cada vez mais, um autor com base na criação alheia. O leitor que adapta o texto a si, ao que pretende, colabora na autoria de um outro texto que lhe chegou à mão. Cruzando-o com outros textos, cria novos. Esta nova forma de textualidade «opposes the standardization of language encouraged by the tradicional text» (Ferris), é mais interactiva, o que também implica um esforço diferente por parte do leitor, que assim se aproxima de ser escritor, estabelecendo com o escritor original um certo tipo de parceria. Os textos, os seus extractos, funcionam, assim, como notas musicais que o leitor compõe numa criação inédita.

Esta forma de criação põe em evidência uma oposição entre um modo de pensar linear e hierárquico e um pensamento associativo e sem limites; na verdade, um regresso a uma certa estrutura de pensamento oralizante, mais orgânica e fragmentada. E quando se fala da rigidez da informação aprisionada no livro, ignoramos que essa informação não existiria se não fosse estimulada pelo livro. A perda desta coerência é algo que caracteriza a contemporaneidade. A escrita hipertextual altera as convenções previamente estabelecidas pela literatura tradicional, e o trabalho de um texto hipertextual nunca está acabado, não tem uma versão definitiva, é o apogeu da pós-modernidade. Neste sentido, o hipertextual aproximar-se-á mais da forma de organização do pensamento humano, desenvolvendo processos de troca para lá dele mesmo. Nesta «nova» textualidade perde-se um pouco do leitor intensivo para reforçar o leitor extensivo, que abarca um pouco de tudo, mesmo que superficialmente. Esta é uma nova forma de ler, em que novas relações são estabelecidas com os textos. Estes conhecerão novos suportes e novas formas de abordagem.

A lineralidade analítica, que potenciou o desenvolvimento do conhecimento científico, é agora subestimada, e até vilipendiada, por quem a vê como um cabresto posto no Homem, e que encara a hipertextualidade como o seu Thomas Clarkson.

Raffaele Simone, citada por Nunberg, fala de um regresso à noção de livro medieval, como texto aberto, um objecto «penetrable, copiable, limitlessly interpretable». A questão é se estaremos dispostos a aceitá-lo de forma tão neutra, correndo o risco de ser despersonalizado. Tal como não aceitamos o redesenhar de um Picasso ou Van Gogh (que não seja em si uma expressão de arte). Haverá obras destinadas a isso, a serem refeitas, recriadas, mas não será esse o paradigma da literatura. Um Miró será sempre um Miró e ninguém o questiona. Talvez com a excepção de Landow, que diz «sooner or later no one will remember the closed and protected text»… mas o valor do que uma pessoa reconhecida pode criar será sempre valorizado como tal.

É evidente que há diferentes tipos de texto e de livros e, por isso, esperam-nos futuros diferentes de acordo com o que falamos. Isto é particularmente relevante em textos técnicos, e em publicações periódicas, nas quais o conhecimento é apresentado de modo mais descontínuo. O livro tornar-se-á obsoleto para esse tipo de utilizações. Para a literatura, será importante ver como se desenvolve a tinta e o papel electrónicos. Se o conforto visual acompanhar a praticabilidade, poderemos ver aí uma queda mais abrupta do livro tradicional, nas gerações que se seguem. Como diz Hillesund, «it is the reading phase of the text cycle that keeps paper going». O grande teste a esta tecnologia passará, antes de mais, pelos periódicos. As actualizações e adaptações estarão sempre disponíveis, o que permitirá acompanhar o ritmo contemporâneo e ler tudo em qualquer lugar. E aqui estimulamos a dependência da «rede». É evidente que, como estrutura de distribuição, a Internet tem vantagens que mais nenhum canal poderá alcançar, não há limites físicos nem de distância. Não há tiragens esgotadas, nem país demasiado longe.

Com o desenvolvimento tecnológico, o ciclo inteiramente digital será a norma. É provável, mas não sabemos se será uma norma dignificada. Os hieróglifos foram substituídos pela escrita hierática em textos burocráticos e cartas pessoais, mas, 2000 anos depois da criação da escrita hierática, os hieróglifos ainda eram utilizados em circunstâncias de maior solenidade. Mesmo hoje em dia, os relógios digitais são a norma, e as crianças mal sabem ler um relógio analógico. Contudo, os amantes do relógio-objecto apenas a este consideram um verdadeiro relógio. A máquina de escrever não acabou com o lápis, como previu o New York Times em 1938, tal como as lentes de contacto não acabaram com os óculos. Os objectos que cumprem de forma acabada a função para a qual se destinam apoiam-se nessa simplicidade para se salvaguardarem da erradicação.

Não podemos negligenciar a inscrição do livro na nossa sociedade, e na nossa mente, como um referencial. Um livro dura muito mais do que qualquer suporte digital até agora conhecido e, quanto mais não fosse por isso, a breve prazo a substituição não é só improvável como até absurda. O seu carácter analógico retira-lhe muito da sua fragilidade, como diz Bolter «books still represent the most economical, flexible, wash-and-wear way to transport information».
A ânsia por perder o livro no caminho que nos leva ao progresso, que parece perto da vista e longe do braço, aparenta estar firmada na necessidade de matar o símbolo de um nefasto sistema conceptual que esbarra, paradoxalmente, na necessidade de usar o próprio na sua desconstrução. O pós-modernismo assentou, em boa parte, na negação do passado e do próprio presente. Fazia-o repetidamente, um pouco como os coveiros do livro tangível o fazem hoje. Recorda a repetição das leis medievais, proclamadas cada ano, vez após vez, símbolo do seu manifesto incumprimento.