Mil novecentos e noventa e um, Outono na margem fria do Danúbio, o crepúsculo, caindo, inundou com a sua cor ácida de maçã verde a espaventosa mentira dos palácios desbota-dos de Peste.
Tudo, em mim, adormece, imóvel e profundamente. Vou remexendo os sentimentos, e os meus pensamentos, como num tambor de alcatrão tépido.
Porque me sinto assim tão perdido? Manifestamente, porque estou perdido.
Tudo é falso (por minha culpa, por meu intermédio: a minha existência falseia tudo).
Se o vazio (o meu vazio interior) ressuma um sentimento de culpa, talvez isso permita concluir das origens. A angústia precedeu a Criação; o horror vacui é uma questão de facto ética.
Ontem, numa espécie de sessão — com uma chamada conferência excessivamente estúpida sobre a excessivamente estúpida «Hungarian jewish coexistence» —, um senhor mais velho precipitou se na minha direcção, tinha o rosto granuloso e deformado, e manchas seguidas de cabelo ralo, como assentos gastos de certos canapés aveludados: nem um só traço me era familiar. Para grande surpresa minha, abraça me, de súbito, e apresenta se: um amigo que não via há trinta e cinco anos. Vive no estrangeiro. Ouviu falar de mim, lera os meus livros. Não compreende, diz, a minha «metamorfose». Então, ele nada notara de extraordinário em mim, nem eu dera mostras, digamos, de «capacidades superiores». Desculpei me um tudo-nada por este resultado inesperado, mas as suas palavras mexeram, na verdade, comigo. Tendi sempre, agora não menos do que antes, a considerar me um «Jedermann», alguém que, pelo menos de um certo ponto de vista, não receou esforçar se, e, antes de mais, no que respeita à lucidez de espírito. Quais são as minhas «capacidades superiores»? Não sigo a única inspiração deste país: o canto incessante e sedutor das sereias do suicídio espiritual, intelectual e, por fim, físico, e isso representa uma certa vitalidade. Contudo, assumir este mínimo como uma vitória seria gravíssima imprudência, e, mais do que isso, uma absoluta falta de cautela. O que mudou agora com a «mudança»? Já não há servidão? Fiquei a salvo de mim mesmo? Simplesmente, aconteceu que me devolveram a conditio minima, a minha liberdade individual — rangendo, abriu se, assim, a porta da cela em que me fecharam durante quarenta anos, e pode dar se que seja bastante para me perturbar. Não se pode viver a liberdade onde se viveu o cativeiro. Seria preciso ir para qualquer lado, ir para muito longe daqui. Não o farei.
Pois, nesse caso, seria preciso que eu de novo nascesse, me metamorfoseasse — em quem, em quê?
Chove. À mesa do restaurante, um homem explica qualquer coisa a uma mulher, qualquer coisa de inexplicável. Ele gostaria de abandonar os ensaios de felicidade que encalham regularmente. Sente se cansado de ir atrás do prazer pelas falsas estradas das promessas, que não conduzem a lado nenhum. Não é outra mulher, ora essa, nem pensar. A liberdade. Regressar à superfície, sair do turbilhão confuso das relações que se arrastam há anos. Está farto de reconhecer em cada uma das relações as suas próprias insuficiências. Vislumbra uma vida breve, intensa, criativa.
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue: Curso de Comunicação Editorial com Jornalistas - João Pombeiro (Editor da LER), Curso de Marketing do Livro, pelos Booktailors.
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue: Curso de Comunicação Editorial com Jornalistas - João Pombeiro (Editor da LER), Curso de Marketing do Livro, pelos Booktailors.