UMA ARTE DE REINVENTAR EM TODA A ESCRITA,
por Pedro Sena-Lino (*)
Muito se argumenta, e mais se espaventa sobre os cursos de escrita criativa em Portugal. A «chegada» dos cursos deu-se nos anos 1980, com um primeiro curso dado por Rui Zink, mas na verdade o processo é longo e ainda vai no adro.
Declaração de interesses: sou fundador e director de uma escola, a Companhia do Eu, criada em 2005, que se dedica em exclusivo à actividade; nos cinco anos anteriores, já organizava e dirigia cursos dispersamente. Na minha forma de os conceber, são reuniões de pessoas com um programa claro e um orientador, cujo objectivo é triplo: encontrarem uma voz pessoal, aprenderem e partilharem técnicas e resultados, conhecerem-se através da escrita. Nunca acreditei em fábricas de escritores e não houve um curso em que não deixasse clara essa premissa.
A importância destes cursos, ainda antes de abordarmos o seu impacto na criação literária, é prévia: claramente emergem como capacidade de suprir uma falta nacional grave: o da criação de grupos culturais fortes, comunidades de conhecimento e por isso de partilha, conscientes de objectivos comuns, irmanados no mesmo propósito, e onde o crescimento de um passa pelo crescimento dos outros. Em turmas mais avançadas (ou mais longas no tempo), o trabalho de escrita de um dos participantes é sentido como um trabalho colectivo, porque o aconselhamento e a crítica fazem parte do processo em que o texto começa a existir. Não é um lavatório de egos, uma sessão de terapia de grupo disfarçada, uma corte de imitadores: é precisamente o oposto de tudo isto, porque o que é comum nasce do mesmo trabalho, do mesmo processo, e rumo ao mesmo objectivo. Como dizia Santa Teresa, e cito de memória, «quando um se eleva, eleva os outros consigo».
Em comparação com muitos outros países europeus, como algumas teses vieram demonstrar, a nossa cultura literária de grupo é deficitária: uma corte pequena, a ausência de pequenos centros ligados à nobreza longe da capital, a inexistência de grupos de criadores. Garcia de Resende coleccionou poemas para o seu Cancioneiro, que não emergiram de um grupo organizado, e talvez apenas a primeira tentativa de grupo criador tivesse sido o da Infanta D. Maria, que juntava em seu torno poetas e pensadores como Luisa Sigeia, Públia Hortênsia de Castro, Paula Vicente, entre outras. Temos notícia que, mais tarde, na casa da Marquesa de Alorna, a célebre Alcipe, havia leitura e comentário de textos, e Alexandre Herculano disso deixou testemunho – e do seu impacto. Igualmente, por outros motivos, desenvolvo tese de doutoramento sobre a importância capital dos Conventos femininos na produção literária. Próximas do século de Alcipe tivemos ainda algumas tertúlias, organizadas em Academias, onde vários poetas glosavam textos em comum, mas o fenómeno foi relativamente breve. Há ainda as tertúlias do século XX, em particular a dos surrealistas, de natureza um pouco diferente.
Donde: a criação em colectivo, ou um colectivo de criação é uma falta grave na nossa cultura criadora. O processo que os cursos de escrita criativa desencadeiam está por isso no início. Noutros países, como na Alemanha, é frequente os poetas, iniciantes e outros, reunirem-se e lerem-se, aguardando comentários e sugestões. Em Portugal, isto ainda hoje seria impensável – embora, noutro campo não criativo, o fenómeno dos grupos de leitura ou comunidades de leitores tenha vindo suprir alguns aspectos deficitários de partilha de conhecimento e discussão. Aliás, a ausência de discussão neste país reflecte-se naturalmente na cultura política…
Para a criação literária, parece-me que estes cursos podem desempenhar um papel relevante. Não é forçoso, nem sequer é recomendável, e muito menos mandatório, que um escritor faça o início do seu caminho através do percurso de um curso de escrita criativa. Muitos novos nomes marcantes da literatura portuguesa contemporânea o fizeram, como formandos, outros não. A questão é: poderá um curso de escrita criativa conduzir um escritor em potência a escrever mais e melhor? Pelo menos, algumas conquistas parecem-me claras, ao longo destes dez anos, e milhares de avaliações de formação dizem-no mais alto: sai-se de um curso de escrita criativa melhor leitor, e melhor intérprete de si mesmo; mais consciente do percurso pessoal a fazer, das suas debilidades e sobretudo das suas qualidades; e mais claramente encontrado na arte de reinvenção permanente que escrever implica. Há que sublinhar igualmente que a devastadora maioria dos participantes nestes cursos, pelo menos nos que oriento, fazem-no também profissionalmente (publicitários, bloggers, mestrandos e doutorandos com o fantasma da tese), ou escrevem claramente para si como processo – de que a Autobiografia é exemplo acabado. Um curso de escrita criativa, da escrita pessoal que emerge num grupo, pode validar e modificar a voz a um nível muito profundo, ainda para mais através de um percurso claro orientado por ferramentas teóricas e práticas: toda a gente escreve desde os seis anos, mas abandonou o diálogo claro com a sua imaginação. Redescobrir isso é um processo que muda escrita e vida. E nesse aspecto, a escrita torna-se um jogo de encontro pessoal, em que o retrato de si e do mundo em si são mudados a cada instante, a cada traço, cada vez mais de acordo com a sua imaginação, cada vez mais vivificado do contacto consigo.
Nesse sentido, a minha última questão é de gratidão. Porque de facto se gera uma energia que não corre apenas pelos participantes, e que leva a todos a reverem-se e reinventarem-se. Eu incluído.
(*) Pedro Sena-Lino (n. Lisboa, 1977) é poeta, com sete livros publicados, donde se destacam Deste Lado da Morte Ninguém Responde (Quasi: 2005, reed. 2008), e Zona de Perda - Livro de Albas. Está traduzido em antologias em Alemão, Francês, Croata e Japonês. Em Junho de 2009 foi lançado o seu primeiro romance, 333 (Porto Editora). É professor de escrita criativa, e Director da «Companhia do Eu»; sobre o tema publicou na Porto Editora dois manuais (Criative-se, 2005, reed. 2008 e Uma Costela de Quem, 2008). É doutorando em literatura feminina do século XVII (FLUL).
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