segunda-feira, 9 de março de 2009

A traição das traduções – Novo comentário de Helena Pitta e resposta de Hugo Xavier

N.E.: A propósito do post que referíamos que o texto de Hugo Xavier estava a suscitar muitas reacções (ver aqui, Helena Pitta enviou mais um texto de comentário (a negro). Hugo Xavier responde igualmente (a azul).

«Li, sem grande surpresa, a nota dos blogtailors sobre a quantidade de respostas ao artigo de Hugo Xavier. Qualquer referência à situação dos tradutores resulta quase sempre numa chuva de comentários que, independentemente da maior ou menor pertinência das intervenções, patenteia sempre um enorme sentimento de revolta dos tradutores face à sua situação profissional. Com toda a franqueza, a argumentação de os preços da tradução não poderem ser aumentados para manter o preço dos livros não me convence. A minha percepção, que vale o que vale e que não é sustentada por nenhum estudo ou estatística, é de que continuamos a fugir à questão principal. Olho à minha volta e vejo que as pessoas gastam imenso dinheiro em telemóveis, em iPods, em mp3, que os miúdos continuam a comprar ténis e roupas de marca, que os restaurantes de fast-food e os cinemas dos centros comerciais estão a abarrotar aos fins-de-semana, que nas filas para a compra de bilhetes uma percentagem substancial dos jovens, além do bilhete de cinema, compra também pipocas e bebidas, que a zona de Santos nas noites de sexta-feira está completamente apinhada de adolescentes que nunca tiveram tanto dinheiro no bolso; que os adultos se endividam para comprar carros que lhes dêem estatuto, férias em Cuba ou no Brasil, e por aí fora. Não me parece que o preço dos livros (de literatura) tenha um peso tão grande no volume de vendas. O que acredito é que as pessoas gastam o seu dinheiro de acordo com as prioridades que estabelecem. E para a maior parte das pessoas, ler não é uma prioridade. O que está em causa é a motivação. O que se tem de incentivar é a leitura, de modo a inverter estas prioridades. É fazer com que as pessoas acreditem que ler pode ser um prazer. E, quando isso acontece, não é o preço do livro que as fará deixar de o comprar. Um livro custa o equivalente a um bilhete de cinema + pipocas + coca-cola. Alguém acredita, realmente, que entre um romance de um clássico a 1 euro e um romance de Dan Brown a 12 euros, o clássico venderá mais? Todos nós estabelecemos prioridades relativamente aos gastos não essenciais, chamemos-lhe assim para facilitar. Para mim, por exemplo, dar 10 euros por uns ténis ou por uma frigideira, é arrancar-me a alma. Seria incapaz de pagar, nem que estivesse a nadar em dinheiro, 1000 euros por uma Bimby ou 200 euros por um telemóvel. E não sou forreta. O que acontece é que estas aquisições não me dão qualquer prazer. O grande desafio é fomentar a leitura, de forma permanente, como uma prioridade nacional. Não me parece, de todo, que essa seja uma meta para ninguém, muito menos para o Estado. Cada vez mais se reduz o peso das disciplinas de humanidades nas escolas; disciplinas como Português, Filosofia, História, Ciências Sociais, são matérias que ensinam as crianças a pensar, a desenvolver espírito crítico, a saber interpretar, a desenvolver um raciocínio próprio. Desapareceu praticamente das escolas qualquer disciplina vocacionada para a música (soprar a Tia Anica numa flauta não é incentivar o gosto pela música) ou para as artes plásticas. A programação dos canais estatais é um escândalo, para não mencionar os canais privados. O conteúdo dos jornais de referência é cada vez mais pobre. Ler as revistas que acompanham os jornais ao fim-de-semana é cada vez mais ler a Caras no dentista ou no cabeleireiro. Não existem programas culturais interessantes. Os poucos que, muito de vez em quando, surgem, são chatos, monótonos, pretensiosos, herméticos. E sempre com as mesmas pessoas. As organizações ou instituições que desenvolvem de facto trabalho a sério nessa área junto das populações passam o tempo na corda bamba sempre com a ameaça de a verba não lhes chegar para as coisas mais básicas. Não vejo que esta situação se reflicta em manifestações de grande indignação que, como se verifica, é uma capacidade cada vez mais atrofiada. O problema continua a ser alterar as mentalidades. O que não me parece é que essa alteração seja uma prioridade ou seja, sequer, desejável, por parte dos poderes. Indivíduos críticos, com pensamento autónomo são, cada vez mais, uma ameaça a evitar.

Depois há as questões mais imediatas: é necessário publicar tanto num país que consome tão poucos livros? Quanto ganham os quadros superiores das editoras? Que valores se destinam aos jornais em troca de críticas geralmente tardias, superficiais, mínimas? Valerá a pena pagar fortunas pelos direitos de alguns dos best-sellers estrangeiros? Por que deixaram de se vender livros de bolso nos quiosques? Por que não investir mais nos livros de bolso? Estas capas, cheias de fotografias e de cor, serão realmente necessárias? Por que não apadrinhar um programa de fomento à leitura numa escola? Ou uma determinada peça de teatro que vá às escolas? Por que não envolver os escritores portugueses em actividades permanentes junto dos jovens e da população? Torná-los mais acessíveis. Inverter esta situação é também do interesse deles. Além disso, muitos escritores são também óptimos comunicadores. Por que não apoiar os professores de português na dramatização das obras de leitura obrigatória, envolvendo os miúdos muito mais activamente? Por que não levar os autores de romances históricos às escolas, fazendo-os participar nas aulas que abordam o tema dos seus livros? Ou organizar actividades motivadoras nas escolas com base nos livros mais vendidos a essa faixa etária? O que vejo muitas vezes também é que muitas das actividades mais publicitadas se dirigem, sobretudo, a pessoas que já foram conquistadas para a leitura. Não é nessas que se deve investir, é nas outras. É arranjar novas fórmulas para se atingir um público indiferente a estes temas. Este seria um bom debate.
Mas o que é incontornável é que muitas editoras vivem sobretudo da publicação de literatura estrangeira. E nesse processo os tradutores são uma peça absolutamente fundamental. É por isso que as opções de gestão das editoras têm de ser repensadas. Porque não é possível continuar a menosprezar desta forma aqueles que garantem a sua sobrevivência. O ónus da adequação à realidade não pode recair apenas sobre os tradutores, tem de implicar mudanças profundas para todos os implicados. E não é isso que se vê.

Helena Pitta»

«Obrigado Helena.

Estamos totalmente de acordo. Já referi todos esses pontos que menciona em diversos textos ao longo dos anos aqui no blogue dos bloguetailors.

Aquilo que temos de fazer é dar a volta a uma sociedade que não incentiva a leitura como fonte de prazer. Se isso for corrigido, corrige-se tudo o mais em muito pouco tempo.

Hugo Xavier
»