EDIÇÃO DE REFERÊNCIA, OU OS INFORTÚNIOS DA VIRTUDE,
por Jorge Colaço (*)
Qualquer leitor médio, mesmo que não seja um «grande leitor», tem uma estante, uma prateleira, um nicho onde guarda obras de referência.
Obras de referência são, genericamente, obras de consulta, isto é, obras que não se destinam a ser lidas de forma linear e contínua, mas sim a serem solicitadas, de acordo com o seu modelo de organização e ordenação, sempre que um assunto, um facto, uma palavra, um detalhe, um significado, uma história, um conceito ou uma figura, suscita um interesse particular, uma curiosidade, uma necessidade de esclarecimento, de saber com certeza acerca de qualquer coisa que causou perplexidade ou deixou dúvidas, acerca de qualquer coisa que se sabe mas não se sabe exactamente, ou, por vezes, apenas para contemplar a imensa quantidade de coisas que não se sabem e talvez nunca se venham a saber.
Guias, compêndios, súmulas, dicionários e enciclopédias de vária índole e tamanho estão, tradicionalmente, na primeira linha desta área de edição.
A velocidade que caracteriza o mundo de hoje, os saltos e sobressaltos que ela tem provocado no quadro referencial do conhecimento e a dissolução das antigas fronteiras da previsibilidade e da mudança vieram introduzir dificuldades até há pouco desconhecidas num campo de produção cara e que nunca teve sequer grande fortuna crítica.
Nesta área de edição, o valor maior sempre esteve, como é natural, na capacidade de uma determinada obra responder, sem margem de desconfiança, às necessidades do leitor-consulente durante um período longo de tempo. No limite, eram livros para toda uma vida.
Acontece, como todos sabemos, que a velocidade e a imprevisibilidade arrastaram consigo o predomínio cultural do imediato e do circunstancial. Tudo aparece envolto em atmosfera de efemeridade – a gramática muda ao sabor do uso, a ortografia está a mudar ao ritmo do samba, o léxico estreita-se à medida do estritamente necessário, a ciência corre atrás de si própria (e por vezes ultrapassa-se) –, triunfalmente celebrada – cada novo gene apresentado parece alinhar-se no programa governamental das novas oportunidades –, laboriosamente repetida – todos os dias se juntam novas ligações ao mar de informação produzida por e para a rede global – e astuciosamente produzida – sustenta-se a ideia de que a «comunidade», no seu conjunto, sabe «mais» que o indivíduo que produz um dado conteúdo, pelo que este nunca estará definitivamente certo nem verdadeiramente encerrado.
Todos têm, democraticamente, uma ou várias palavras a dizer, vive-se a euforia, se não mesmo o delírio, da participação e do comentário: nos jornais, nos blogues, nas instituições, nos fóruns; a tecnologia produz sem cessar novos canais e formas de dizer ou mostrar as mesmas coisas como se fossem realmente diferentes ou novas; celebra-se o fascínio adolescente da novidade e da possibilidade, floresce a bravura social através da organização de conexões infinitas ou limitadas, à medida do freguês. Estar «em rede», se não garante a felicidade, assegura pelo menos uma sensação de contemporaneidade. Tudo sem sair do lugar.
Ironias à parte, não nos iludamos, em tudo isto haverá um pouco (ou muito) de ganho, de verdade e de fundamento. O ar do tempo diz que nada será como dantes: a economia e o mercado, a comunicação, a leitura. A política ameaça ser a brilhante excepção.
À edição de referência apresenta-se um destino darwiniano: ou se adapta ou desaparece. Se se adaptar, reinventando-se, é bom que trate de não perder a sua natureza, para que este passo não seja, ele também, em direcção ao desaparecimento. Mas a reflexão que talvez importe fazer é precisamente de ordem política: desaparecendo, ela só ficará a fazer falta a um número reduzido de indivíduos ou, pelo contrário, ela vai fazer falta a um número crescente de pessoas?
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