segunda-feira, 9 de março de 2009

Opinião: A herança de madame de Rambouillet, por Eduardo Pitta

A HERANÇA DE MADAME DE RAMBOUILLET,
por Eduardo Pitta (*)

A generalidade das pessoas assanha-se facilmente com aquilo que considera a deficiente cobertura da imprensa escrita à actividade editorial. É evidente que estas «poucas pessoas», e a generalidade delas, se esgota no reduzido círculo de quem acompanha a vida literária. Vamos a ver, e as razões de queixa radicam quase sempre no facto de A ou B não ter chegado às páginas dos jornais. É natural. Publicando-se por ano, em Portugal, qualquer coisa perto de 20 000 títulos, se 10% desse total for alvo de referência, podemos dar-nos todos por satisfeitos. Não falo de recensões críticas, as quais, se chegassem às 600 por ano, e por jornal de referência, cobririam o essencial. (Sem dispor de números, suponho que o «Ípsilon», do Público, terá publicado em 2008 qualquer coisa entre 360 e 400 recensões críticas de livros; esta estimativa exclui a rubrica «Saídas».) Não sendo possível recensear tudo o que sai dos prelos, seria desejável, no entanto, que os jornais alargassem o espectro do enfoque.

Sempre me causou perplexidade o afunilamento do jornalismo literário à recepção crítica da ficção, da poesia (cada vez menos) e, em casos particulares, da tradução de clássicos, actividade constante no tempo, menos ocasional do que presume uma larga maioria de leitores. Traduzir Séneca, Dante ou Ariosto não comove o jornalismo literário se o tradutor não fizer parte do star system, pois ninguém liga peva ao pedigree académico. O resto desaparece. E não, não é verdade que a causa seja o espaço progressivamente mais reduzido que os jornais reservam aos livros. Bem vistas as coisas, na segunda metade dos anos 1980, época dita «de ouro» do jornalismo literário português, o panorama era idêntico. Havia mais espaço, verdade que sim, aceitava-se como direito dinástico o lobby a favor de certas coteries, a promoção de obras e autores obedecia a critérios (mal ou bem, havia critérios definidos; a moda do «porque sim» é recente), mas, na realidade, tudo girava em torno do binómio poesia/ficção. Os termos inverteram-se, sendo hoje em dia mais ficção e menos poesia.

Numa época em que tanto se traduz, em todos os géneros, a desatenção dos jornais ao ensaio literário ou político, à história, à sociologia, a trabalhos de índole jornalística (como, entre outros, os de Bob Woodward e Robert Fisk), ao teatro, à crónica, ao memorialismo, às biografias, a volumes de correspondência, etc., dá que pensar. Percebo que um jornal tenha dificuldade de encaixar num caderno de livros notas de leitura sobre teoria de bioestatística e epidemiologia. Certo, não dá a bota com a perdigota. Mas se Sloterdijk e Zizek (embora não Rorty) são hoje clichês do jornalismo hebdomadário, o espartilho da genologia perde sentido.

O problema não está na pouca ou nenhuma atenção dada a A ou B, que talvez sejam famosos no prédio onde vivem. A questão é outra. Melhor ou pior, as pessoas preocupam-se com questões civilizacionais, dezenas de obras reflectem essas questões (só a Era Bush é toda uma biblioteca!), e, contudo, o que chega à nossa imprensa é residual. Esse défice tem consequências.

(*) Eduardo Pitta nasceu em 1949. É escritor, poeta, ensaista, crítico e autor do blogue Da Literatura. O seu livro mais recente é o romance Cidade Proibida (2007). Nos próximos meses, será publicado o volume de ensaios Língua dos Eleitos. Web pessoal: http://www.eduardopitta.com/
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