segunda-feira, 16 de junho de 2008

Acordo ortográfico: carta aberta de Maria Alzira Seixo ao Ministro da Cultura

«Dado o meu grande respeito pelo cargo que o Senhor Ministro da Cultura desempenha, retenho (e estranho) certas palavras que recentemente pronunciou no Brasil.

Um exemplo:

«Façamos mais de duzentos milhões de grandes patriotas cultos e espalhemos pelo mundo esse modelo plural e heterónomo de ser e este modelo de xenofilia, de integração pela língua e pela cultura tolerantes e acolhedoras», disse.Comentário:

Mas então, só o Acordo Ortográfico pode tornar «grandes patriotas» os 200 milhões de falantes da língua portuguesa, que antes, pressupõe-se, o não eram? E «cultos»? Estariam então impedidos de ler, antes do Acordo Ortográfico, Camões, Machado de Assis, Pessoa e João Cabral?

E tem o Senhor Ministro a certeza que Os Lusíadas, o Dom Casmurro, a Mensagem e A Educação pela Pedra continuarão a ser lidos «como» eram antes das alterações ortográficas agora projectadas?

Senhor Ministro, por favor verifique. É que tenho notícia que muitos dos responsáveis pelas aprovações do Acordo Ortográfico não o leram sequer, imagine.

Quanto ao «modelo de xenofilia e pluralidade heteronímica de ser», que propõe, já tenho menos dúvidas: a pluralidade de grafias com que o Acordo Ortográfico a concretiza (a pretexto de uma unificação meramente onírica, que não é mais, parafraseando o Senhor Ministro, que o sonho luso quanto ao grande país brasileiro), só é pena que lance todos os falantes da língua portuguesa na confusão de um escrever multigráfico, em que falantes e falas serão simultaneamente, cada um deles, uns e outros (e, logo, desidentificados de si próprios), em vez de serem uns com os outros (que é a grande conquista efectiva da Teoria Pós-Colonial) e, por terem a sua identidade assegurada, poderem neste caso dialogar, a partir das suas diferenças e identidades. Pois o que do Acordo Ortográfico resulta vai é aproximar-se da neurose de Mário de Sá-Carneiro: «Eu não sou eu nem sou o outro / sou qualquer coisa de intermédio.» Isto é, um projecto que se fica pelo meio, sem arranque sólido, nem segurança de fins.

Ou, como diria Shakespeare, autor da língua menos reformada e mais falada do mundo: words, words, words.

Outro exemplo:
O Senhor Ministro defendeu igualmente, dizem-nos, «num tempo de tão dramáticas circunstâncias e de tanta incerteza e desorganização internacional», uma «política comum aos países de língua portuguesa», «uma política que leve o Brasil a membro permanente do Conselho de Segurança e à reforma da ONU, faça do português língua de trabalho, interpretação e tradução em todas as organizações internacionais».

Comentário:
Apreciamos a confiança que o Senhor Ministro deposita na CPLP como fautora de um tempo novo, em que os falantes de língua portuguesa, unidos pelo Acordo Ortográfico, ofereçam ao mundo uma existência sem drama, sem incerteza, sem desorganização. E no qual a emergência do Brasil como grande potência fique a dever ao Acordo Ortográfico esse lugar que sem Acordo Ortográfico não teria, parece – mas é preciso que o Senhor Ministro leia os pareceres de especialistas que sobre o Acordo Ortográfico se elaboraram, para se assegurar de que ele é mesmo garante do combate à incerteza, à desorganização e ao drama, pelo menos o drama de se ir deixando de saber escrever. Esses pareceres que teremos o gosto de apresentar directamente ao Senhor Ministro, na audiência que nos marcou para dia 12 p.p. e entretanto adiou, e que continuamos a aguardar com muito empenho.

Maria Alzira Seixo
Professora de Literatura
Universidade de Lisboa »

Retirado daqui.