Reproduzimos hoje a entrevista publicada no Ipsilon (Jornal Público) de 16.11.2007, páginas 22 a 26, dedicada a Joaquim Vital. Uma peça desenvolvidada por Sérgio C. Andrade com o título "Joaquim Andrade, o editor da diferença".
Joaquim Vital recebeu o Ípsilon no escritório da sua editora em Belleville, paredes-meias com a memória de Edith Piaf. Um edifício discreto numa rua estreita deste bairro popular agora habitado pela comunidade chinesa de Paris. Uma mesa-secretária entre pilhas e pilhas de livros, apenas alguns do milhar e meio de títulos que editou desde que se estabeleceu na capital francesa no início da década de 1970, depois de um primeiro exílio de seis anos em Bruxelas.
O jovem Joaquim Vital abandonara Portugal (e Lisboa, onde nascera em 1948) depois de ter passado pelas cadeias da PIDE, em 1965, pelo simples facto de ser estudante e militante do Partido Comunista. Já nessa altura se tinha manifestado a sua paixão, autodidacta, pelos livros - em resultado de "uma vocação congénita". Era ainda "teenager" quando editou um volume de ensaios de Urbano Tavares Rodrigues, "Escritos Temporais". Quando percebeu que a PIDE estava de novo no seu encalço, fugiu do país e exilou-se em Bruxelas, onde continuou a sua militância política, mas agora já distante da linha do PC e mais virado para "a luta armada, entre o maoismo e o guevarismo", e onde a actividade editorial tinha também papel a desempenhar. Era o tempo da editora La Taupe, nome de ressonância marxista - a toupeira vista como "a metáfora da Revolução". Nesses anos pós-invasão soviética de Praga de 1969, Joaquim Vital haveria de voltar a conhecer as celas, em Brno, Checoslováquia, mas desta vez "por razões quase opostas", quando foi tido como um espião que faria sair documentos dos anti-estalinistas checos para o estrangeiro.
No final, a luta (e a causa) que ficou foi a dos livros. Foram eles - e os escritores e artistas que foi conhecendo - que o fizeram optar, em 1972 e em definitivo, por Paris. Aqui fundou, quatro anos depois, La Différence, primeiro para publicar livros de arte, mas depois para poder chegar à arte que mais o fascina, a poesia. E decidiu, desde o início, que a literatura, a poesia e a arte do seu país teriam um lugar especial no catálogo - que conta já uma centena de títulos de autores portugueses. Passadas já três década de uma actividade "diferente" daquelas que marcam o panorama editorial, tanto em França como em Portugal, aceitou fazer para o Ípsilon uma viagem pelas suas afinidades electivas.
La Différence apresenta já um catálogo notável para uma editora independente.
Em 31 anos, publicámos 1500 livros, ou seja, 50 por ano, em que o essencial é, de facto, a poesia. Mas publicámos duzentos e tal livros de arte, muita literatura estrangeira e muita literatura francesa - estamos numa fase em que publicamos muita literatura francesa. Houve também uma altura em que publiquei muita literatura portuguesa, apesar de, no princípio, não estar voltado para aí. Para falar com franqueza, foi uma fase em que quase cortei com o país. Mas, depois, apercebi-me de que havia tais lacunas em relação à difusão da literatura portuguesa que resolvi fazê-lo. E devo ter publicado, até à data, uma centena de títulos de autores portugueses, que, agora, aqui é já mais conhecida. Mas continuo a publicar.
Na lista de autores portugueses que editou, não estão, por exemplo, José Saramago, nem António Lobo Antunes, nem Agustina. Porquê? Achou que eles não tinham necessidade disso?
Na altura em que comecei, eles tinham todos necessidade disso. Salvo a Agustina, que tinha publicado na Gallimard vários anos antes, nenhum estava traduzido em francês. Do Saramago, eu devia ter publicado um livro dele. Cheguei a fazer a proposta para o "Memorial do Convento", mas foi dez dias depois da editora que acabou por o publicar. É um dos livros de Saramago que prefiro... Já o Lobo Antunes, contrariamente a muita gente, não é um dos meus autores preferidos. Não o publicar foi também uma escolha editorial... No caso da Agustina, havia um livro que já tinha sido publicado, e outros que já estavam em opção num outro editor. O meu critério, nessa altura - para dizer a verdade, agora já não é tanto assim -, era que quando havia um autor português que já tinha editor, eu ficava contente e não via por que é que me ia misturar no assunto. Para além de que havia outros que eu queria mesmo publicar, como a Sophia.
Sophia e Maria Judite de Carvalho são as escritoras de quem publicou mais livros. São as autoras de quem gosta mais?
A Sophia, eu tive por ela uma autêntica paixão. É absurdo, porque não tínhamos nada o mesmo tipo de carácter. Mas considero que ela e o Eugénio de Andrade, na segunda metade do século, são os dois grandes poetas portugueses. Sem falar do Herberto Hélder, que também admiro. A Maria Judite de Carvalho, conheci-a desde muito cedo, por via do Urbano Tavares Rodrigues, que era o seu marido. Eu adorava os livros dela, e pensei que, em relação a um público francês - e não me enganei -, a literatura da Maria Judite ia interessar. É uma literatura seca, aguda, irónica, muito portuguesa. Aparentemente simples, mas muito complicada. Os livros dela tiveram aqui um sucesso muito maior do que alguma vez em Portugal - e continuo a pensar que, actualmente, ela é mais conhecida aqui. O caso da Sophia foi diferente. Fui eu que a traduzi, o que não fiz com mais ninguém, à parte o Vasco Graça Moura, que, para mim, é actualmente o grande poeta português.
Quando escolhe um escritor português para editar em França, para além do gosto pessoal, fá-lo também com algum espírito de missão: dar a conhecer um autor que acha que merece ser conhecido?
A poesia, em França, actualmente não tem público. É escusado um editor tentar escolher qual é o poeta português que se pode vender melhor cá. À parte, claro, o caso excepcional do Fernando Pessoa. A poesia vende-se ainda pior em França do que em Portugal.
Foi sempre assim?
É uma realidade que vem já de há muito tempo. Mesmo quando se pega nos grandes poetas franceses, o [Louis] Aragon, ou poetas de grande público, as tiragens eram muito inferiores às de Portugal. Um livro do Aragon, ou do [Henri] Michaux, mesmo que numa primeira edição tirassem 15 mil exemplares, vinte anos depois não estava esgotado! Em Portugal, a relação com a poesia foi um bocado falseada durante o salazarismo, em que ela teve um papel de resistência, e houve tiragens de livros da Sophia, e do Eugénio, que devem estar nos 30 mil, 40 mil exemplares... Era quase uma actividade militante
Não acredita, então, naquilo que se diz de Portugal ser um país de poetas?
Não. Mas estou convencido de que, na literatura portuguesa do século XX, o essencial é a poesia. De longe.
A poesia portuguesa dessa época vai ficar para a História?
A poesia portuguesa do século XX é uma das maiores da Europa, para não dizer do mundo. Há imensos poetas de primeira água, e não há dezenas de romancistas de primeira água. Há autores muito bons, e há um que é um grande escritor - e em França nunca foi traduzido - e que só publicou três livros, antes do 25 de Abril: é o Nuno Bragança. É um excelente romancista, que, aliás, influenciou muitos dos autores actualmente na moda. Mas não direi que tenha a mesma importância duma Sophia. E há também a Sophia contista, porque há contos dela que são poesia em estado puro, como "A Viagem" dos seus "Contos Exemplares", que é, para mim, um dos melhores contos do século XX. Este tipo de entusiasmo, com os romancistas portugueses nunca os tive. Nem com o Vergílio Ferreira, que é um excelente romancista, mas que não tem o "éclat", este estado de magia que há em certos poetas portugueses.
A perspectiva de um autor funcionar ou não em língua francesa condiciona a escolha dos que publica?
No romance e nos contos, evidentemente que isso conta mais. Há autores portugueses que é uma pena não estarem traduzidos em francês, mas que, independentemente da minha vontade... Por exemplo, o Miguel Torga foi muito traduzido, e muito bem. Mas já não há nada do José Régio. São azares.
E do Aquilino Ribeiro há muito pouco.
Por exemplo, "A Casa Grande de Romarigães" é um livro excelente em português, mas não vejo como é que um público francês poderia interessar-se por ele. O que poderia interessar-lhe, no Aquilino, é aquilo que é menos Aquilino: certas novelas. Mas a grande marca dele é um certo estilo da linguagem, que é extremamente difícil. A menos que, de repente, apareça um tradutor de génio. Mas esses são raros. Tive um tradutor de génio - foi quando publiquei "A Peregrinação", do Fernão Mendes Pinto. Foi um trabalho extraordinário feito por um desconhecido, Robert Viale, que trabalhou nele quatro anos. Só me traduziu isso e mais nada. Acabámos por dar ao público francês uma edição sem trair nada, que eu próprio leio mais facilmente em francês do que em português. Mas é um caso raríssimo. Aliás, a edição foi uma divina surpresa, porque vendi 18 mil "Peregrinações", o que é inesperado - e fiz uma primeira edição de dois mil exemplares.
O que é que conhece da literatura portuguesa actual?
A prosa portuguesa contemporânea conheço-a relativamente mal, porque não leio muito. Quando vou a Portugal - de dois em dois meses, por razões familiares -, compro sempre cinco ou seis livros recentes. É a principal ligação que tenho com Portugal. Mas é uma relação bastante aleatória.
Dos autores mais jovens e recentes, algum lhe chamou particularmente a atenção?
O [José Eduardo] Agualusa é um excelente autor. E há um outro interessante, o Gonçalo M. Tavares, autor do "Jerusalém", que tem uma obra curiosa. Pedi uma opção para um livro dele, mas há uma amiga minha que já me anunciou que tinha comprado os direitos para o publicar cá. Mas, à parte os livros do Agualusa, continuo a ler os livros dos autores que publiquei. O meu critério é especial: raramente me decido a publicar um autor em função de um livro, a menos que seja um primeiro livro. Interessa-me mais ter uma política de autores e continuar a publicar obras deles que acho importantes do que publicar um livro para fazer um "scoop". Isso nem é bom para o autor, nem para o editor.
A actividade de um editor independente em França é rentável?
Pouco. Vivemos sempre de uma maneira esquizofrénica. Temos um sector do livro de arte, que continua a render mais do que a literatura e a poesia, e que financia praticamente a editora. O sector literário é mais difícil. Mas o meu critério é publicar um livro se acho que ele é bom... Evidentemente que prefiro que o livro se venda, porque não sou masoquista. Mas nunca recusei um livro com o argumento de que não se ia vender. Se não se vender no primeiro ano, vende-se no segundo, ou no terceiro... ou quinze anos depois. Mas o problema é que o circuito da imprensa e da distribuição não está nada feito para o nosso género de produção.
Não há lugar para os fundos editoriais?
Não. O fundo, que para mim é a única coisa interessante na edição, não vai de vento em popa, porque o que as pessoas querem é o livro-objecto, que está uma semana nas prateleiras. Vende-se muito, mas depois desaparece. Esse tipo de edição não me interessa nada.
Tem, então, cada vez mais dificuldade em distribuir os seus livros
Não nos distribuímos a nós próprios. Somos distribuídos por uma distribuidora, a mesma da Seuil. Num livro que eu possa dizer que é de grande público, posso pôr três mil, quatro mil ou cinco mil exemplares. Mas se vou publicar um livro de poemas, é absolutamente inútil dizer às pessoas... Insisti sempre em manter um sistema de difusão industrial, porque, neste aspecto, não acredito no artesanato. Mas não temos o produto que actualmente preenche as prateleiras de livros nos supermercados em França. A nossa produção é para a rede das livrarias, das Fnac, das bibliotecas.
Em que ponto está o seu projecto de escrever (e editar) um livro sobre os "Cem Anos da Literatura Portuguesa"?
Ando a trabalhar neste projecto há sete anos. Vou ainda precisar de mais quatro ou cinco. A ideia é ir do Eça até à actualidade.
Que outros projectos tem em carteira, como escritor?
Vou publicar, pela primeira vez na minha vida, em Outubro do ano que vem, quando fizer 60 anos, um livro de novelas. O título será "La Vie et le Reste".
No seu livro que publicou em 2004, "Adieu à Quelques Personnages", porque é que escreveu só sobre figuras já desaparecidas.
Eu não escrevi só sobre pessoas que já desapareceram. As personagens que dão origem aos capítulos já desapareceram, mas falo de muitas que ainda estão vivas. O meu critério era "homenagear" - não gosto muito da palavra - pessoas que no contacto que tive com elas e que nas minhas actividades me tinham impressionado. A ideia de juntar a essas personagens pessoas ainda vivas não a adoptei por um processo de comodidade - de baixa comodidade. Contacto com muita gente, tenho muitos amigos, e se ia escrever sobre uns e não sobre os outros, iria entrar em susceptibilidades que não eram nada o meu objectivo. Foi essa a razão. Há algumas pessoas mais, daquelas com quem trabalho, de quem gostaria de fazer o retrato. Mas há outras de quem gosto muito mas de quem não tinha vontade nenhuma de fazer o retrato.
Dos quarenta e tal personagens a que dedica os capítulos do livro, só há quatro portugueses: Edmundo Bettencourt, Vergílio Ferreira, Maria Helena Vieira da Silva e Maria Judite de Carvalho...
Houve naturalmente aqueles autores de quem não podia fazer retratos: o Eça de Queirós, de quem publicámos praticamente a obra completa, ou o Fernão Mendes Pinto. Dos outros, há muitos que, felizmente, continuam vivos. Ou estavam vivos no momento em que escrevi o livro: a Sophia, por exemplo, de quem teria gostado muito de fazer um retrato; o mesmo com o Eugénio de Andrade. E gostaria muito de escrever sobre o Urbano Tavares Rodrigues e sobre o Júlio Pomar, mas eles, felizmente, estão vivos.
[Caixa]
No seu livro "Adieu à Quelques Personnages" (Éditions de La Différence, 2004), Vital evoca mais de quarenta personagens com quem privou, ou contactou, ao longo da sua actividade de editor. A pretexto dessas memórias, aceitou entrar num jogo espontâneo, que consistiu em identificar e classificar algumas dessas figuras das artes e das letras com quem teve encontros e (nalguns casos) desencontros.
Maria Helena Vieira da Silva - A última grande pintora de uma tradição que se perde.
Sophia de Mello Breyner Andersen - O mar, o sol, toda a beleza do mundo.
Eugénio de Andrade - Poeta do essencial, a simplicidade dos seus versos é apenas aparente
Edmundo de Bettencourt - Para mim, incarnou o mistério da poesia.
Vergílio Ferreira - Um excelente escritor e um honesto cidadão, voluntariamente antipático.
Urbano Tavares Rodrigues - Real talento, entusiasmo sincero e ingenuidade por vezes desconcertante.
Maria Judite de Carvalho - Uma lucidez implacável.
Júlio Pomar - O melhor pintor português vivo, e não só.
Herberto Helder - Nunca nos falámos, apesar de ter editado dois livros dele. Livros singulares, ricos, intensos.
Max Ernst - Águia e leão, um dos reis da selva surrealista.
Joan Miró - Alguns dos seus quadros são autênticos milagres.
Francis Bacon - Extraordinariamente exacerbador dos sentidos.
Pierre Klossowski - Um dos raros homens que pensou a sério o erotismo.
Gilles Deleuze - A inteligência ao rubro.
Claude Lévi-Strauss - Um monumento. Respeitável como quase todos os monumentos.
Federico Fellini - Genial, insolente e sibarita.
Orson Welles - Um gigante da história do cinema. E o marido da Ava Gardner e da Rita Hayworth (risos).
[Caixa 2]
Autores portugueses este ano e no próximo no catálogo de La Différence
2007
Isabel Fraga, "Le sourire de Leonor"
Nuno Júdice, "L"Ange de la tempête"
Teresa Rita Lopes, "La Vie en vers"
Vasco Graça Moura, "Une Lettre en hiver"
António Osório, "Les Yeux d"Ulysse"
Eça de Queiroz, "Lettres de Paris" (bolso)
Pierre Restany, "José de Guimarães, le nomadisme transculturel"
Mário de Sá-Carneiro, "Poésies complètes" (bolso)
2008
Nuno Bragança, "La Nuit et le rire"
Mário Cláudio, "Rosa"
A. Campos Matos, "Eça de Queiroz et les sept biographes"
Isabel Fraga, "La Dessinatrice"
Vasco Graça Moura, "Le Magnolia"
Eça de Queiroz, "Contes et nouvelles"
Urbano Tavares Rodrigues, "Les Carnets secrets d"António de Portugal, prieur du Crato"