sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Entrevista: Vitor Silva Tavares, &Etc (3/3)

Conforme prometido, deixamos aqui a conclusão da entrevista conduzida por Alexandra Lucas Coelho ao editor da & Etc - Vitor Tavares.

Poderão ver as duas partes inciais da entrevista aqui e aqui.


Em que ano?
Há mais de 20 anos. A oficina fechou e o material dispersou-se. Só um país de milionários broncos como Portugal é que se pode dar ao luxo de desperdiçar estas artesanias. A saloiada mental de seguir sempre o mais avançado leva-nos a menosprezar estas coisas. Porque se eu for ali à Suíça ou aos Estados Unidos da América tenho oficinas manuais e ainda a quente, a chumbo. Desde o tempo do senhor Gutenberg, mantêm-se os tais canônes, mesmo no que diz respeito à paginação, à colocação das linhas, à maneira de paginar poesia.

Aprendi, por exemplo, a paginar poesia com José Apolinário Ramos, grande artista tipógrafo da Tipografia Ideal, ele próprio poeta. Tipografia essa que chegou a fazer livrinhos do Gomes Leal e onde eu fiz “A Fome de Camões”, de Gomes Leal, com os mesmos tipos [de letra]. Na poesia, sobretudo, atendendo a que os versos ora são muito curtos, ora são muito extensos, aquela coisa de, para facilitar, encostar sempre à esquerda da mancha, faz com que, em grande parte dos livros em que temos versos curtos, o resto da mancha seja um vazio enorme. Ele estabeleceu um eixo central na página, e a colocação do verso é pela medida do verso mais largo, que dentro desse eixo vai determinar o resto, dando assim uma harmonia no interior da mancha. Aqui está consignado. E muitos outros, o Manuel de Freitas [na editora Averno] e etc, começou tudo a paginar a poesia como ela deve ser. Isto vem do velho José Apolinário Ramos, que era tipógrafo durante o dia e ao fim da tarde tirava a sua batazinha azul, vestia o seu casaquinho, descia a Calçada de São Francisco e ia a pé até à Rua da Voz do Operário para a menina dos seus olhos. Porque era ele que cuidava da Biblioteca da Voz do Operário.

O etc liga-se à Tipografia Ideal por um episódio engraçado. Um dia passei por ali, olhei lá para dentro e era a escuridão total. Entrei e quis ver as caixas dos tipos. Sempre gostei muito de material tipográfico, da composição. O homenzinho começa a abrir as caixas, e eu caio para o lado de espanto. Ele eram maiúsculas de aço, lindas, de desenho, vinhetas, adornos, bom aço alemão do século não sei quantos. Uma maravilha que estava para ali perdida. Aquela casa já tinha tido o seu período heróico, entretanto tinha caído numa tal decadência que já só fazia cartões de visita, papel de carta, envelopes. E eu vou desafiá-los para voltarem a fazer aquilo a que se chama composição a cheio, obra livro. “Ah, não...” Estava tudo a cair da tripeça.
Fartei-me de falar da literatura de cordel, ia fazer a literatura contra-margem com papel manteigueiro, à memória desses opúsculos que se vendiam efectivamente pendurados num cordelinho, e com aquele papel tosco. Vamos lá dignificar os próprios materiais baratos em livro. Foi um entusiasmo e desatei a fazer lá os livrinhos, e a aprender muitíssimo com o José Apolinário Ramos. Dávamo-nos muito bem. Gostávamos da mesma coisa. Era um homem de rigor.

A zincogravura permite uma impressão muito melhor do que o “offset”, porque a impressão é como se fosse gravada, sobre pressão. Actualmente, o “offset” escorrega sobre o papel, toca-o. A pressão dá à coisa impressa personalidade táctil.

Agora já não é possível fazer livros assim. Mas uso truques. Imprimo a cartolina da capa ao contrário. Em vez de imprimir na parte brilhante, imprimo na parte baça. Se lhe puser a mãozinha sente ainda aquela penugem. Isto dá mais trabalho ao impressor, porque pode dar um certo efeito de mata-borrão. Então é preciso lutar-se contra o material. Mas essa luta é boa. E permite ao livrinho parecer totalmente artesanal.


Eduarda Dionísio [com quem trabalhou na associação Abril em Maio e recentemente no jornal “PREC”] diz que não há coisa de que o Vítor Silva Tavares goste mais do que a tipografia, e o Alberto Pimenta [um dos autores mais da casa, na & etc] crê que a fusão inseparável da estética e da ética é o que melhor o define.
Tudo o que disse sobre a artesania do livro se relaciona bem com essa fusão.


Agora preside à Abril em Maio, que está num limbo. O que o fez querer pertencer a este colectivo? Como resistência – não sei se a palavra é a boa?
É essa. É a única.

Um dia a Abril em Maio pediu para aqui uns livritos, disse onde era, à Graça, fui lá a um debate, um rés-do-chão de uma casa antiga, fiquei encantadíssimo por ver aquele espaço e reencontrar finalmente a Eduarda Dionísio, que conhecia de nome. Sabia-a filha de quem era, mas nunca tinha tido relacionamento próximo.

E ao saber que aquela coisa tão encantadora que ali estava, onde um disco daqueles que não aparecem em lado nenhum – sei lá, o García Lorca a tocar piano – está ao lado de uma garrafa de azeite, de um boneco de barro, de um livro; ao ver o tipo de pe, ssoas, a miudagem; ao ver que também ali não havia nenhum propósito lucrativo, era uma associação cultural propriamente dita, e que também ela não dependia de nenhuma espécie de subsídios, nem disto nem daquilo, ou não estivesse lá a Eduarda Dionísio: havendo afinidades que não se podem circunscrever ao ideológico, que têm a ver com a maneira de estar e de fazer cultura, alheia ao “mainstream”; eu, que jamais tinha pertencido a qualquer clube resolvi ser sócio daquele.
Estava longe de imaginar que iria filiar-me numa associação que tinha a sua morte anunciada. Ser sócio não é só pagar a quota. Não posso abandonar o etc, onde faço de tudo, sou eu que varro também o chão, essas coisas, a minha disponibilidade está repartida, sempre. De qualquer modo tive trabalhos, iniciativas, ideias na Abril em Maio, daquela pulga eléctrica que é a Eduarda Dionísio. Tenho uma grande ternura por ela, uma grande admiração por aquela capacidade de mobilizar e de fazer, também pela sua capacidade de organização, eu que sou desorganizado. Muitas afinidades. De tal modo que não me interessa assim tanto a Abril em Maio. Quando gosto de uma pessoa, sou de uma fidelidade total. Só estou lá porque lá está a Eduarda, cultivando com ela o mesmo tipo de fidelidade. É um mau feitio que me quadra muito bem. Quem me dera ter dez por cento daquele mau feitio. É sempre recto.


Sempre falou no trabalho como uma fruição, parte da vida, dos amigos. É raro as pessoas estarem numa coisa porque gostam muito de alguém. Têm objectivos, têm projectos, podem ganhar isto, aquilo.
Eu e a Eduarda gostamos de fazer coisas. Com as mãos, com os pés, com a língua. Não vamos teorizar muito sobre as coisas. Temos afinidades, é escusado estar a gastar saliva. Entendemo-nos muito bem. Podemos passar logo para a acção e mobilizar outros para esse trabalho.


A ideia do “PREC”?
Nasceu aqui. O título foi meu. Quem tiver ideias sobre o nome a dar a esta folha, que é para ler e não para ver, portanto vamos inundar a mancha com letras, uma letra vale mais que mil imagens...


Isso hoje é um verdadeiro PREC.
Exacto. Então, quem tiver ideias ponha no papel. E eu tenho aqui uma que é uma dupla provocação: desta porta para fora, quando sair, e desta porta para dentro, para as cabecinhas de todos nós que aqui estamos. A minha proposta é chamar-lhe PREC.

Ponto dois, toda a gente vai associar PREC ao processo revolucionário em curso. Só que nós vamos utilizar cada número para aquilo que nos der na bolha, e assim subvertermos a própria ideia feita do PREC, porque no interior das letrinhas vamos sempre meter coisas distintas, o que foi praticado com algum humor.

PREC porquê? Porque é PREC, sim senhor, contra-corrente, o próprio formato, outra vez o papel manteigueiro, e, à semelhança dos velhos jornais, encher aquela página literalmente com um corpo tão pequenino que vale pela mancha. É, em sim mesmo, uma afirmação estética, tipográfica. Depois, se as pessoas quiserem ler, com esforço, claro, até têm lá coisas para ler.
E de um trabalho tão duro, por vezes até às duas, três da manhã, conseguirmos um momento lúdico de trabalho, sempre a rir, e sem expectativas.

Fazemos as coisas porque temos de as fazer, porque está na nossa condição. Depois já não é connosco, já está para fora de nós. E a mim tanto me faz que haja só uma pessoa que tenha lido, criticado aquilo, como dez mil, uma que fosse. Aí não tenho espírito de missão, nem aqui dentro. Isto não é nenhuma igreja, não há aqui nenhuma crença, faz-se porque se tem de fazer, está na nossa condição fazer, fazer assim, saber porque fazemos assim. Perseguimos, sim, uma ideia de harmonia, de beleza, de intervenção, e sabemos que é uma resistência. Resistência é a palavra, à falta de ar vigente, ao obscurantismo, à criação permanente de falsos mitos passageiros.


Quando olha para o que os jornais hoje são, quando olha para as livrarias e o que as povoa, o que sente? O que é que está a acontecer?
Ainda gosto de jornalismo e de jornalistas. Obviamente já não gosto de jornais. Não gosto da tabloidização dos jornais. Do jornal espectáculo. Fui homem de camisolas. A minha camisola em termos de jornalismo chamou-se “Intransigente”, em Benguela, e depois “Diário de Lisboa”. Não me reconheço de modo nenhum nos jornais que hoje existem. Mas sei fazer o “distinguo” dos jornalistas. Não são todos, claro, mas são alguns e esses sei reconhecê-los e gosto de jornalistas. Pessoas que ainda se queimam, porque é uma profissão para queimar. Gosto de jornalistas que têm a consciência de que estão lá para arder, num mundo que está a arder.
Há muita gente que acha que os jornais em papel não vão sobreviver.
É inevitável, vão sobreviver. Porque fixam coisas. Têm um suporte material. Sei que a onda agora não é essa mas é uma onda.


Vamos precisar sempre de alguma coisa portátil para pôr no bolso?
Alguma coisinha para agarrar com a mão. Precisamos de corpo, e os jornais são ainda corpo matérico.


O que é que pode renascer da Abril em Maio?
Sou um director virtual, nem lá ponho o pé, mas aquilo é também um espaço. E que espaço. Tem enormes virtualidades. Afirma logo muita coisa. O tipo de actividade que tinha suspendeu-se com a gradual saída da Eduarda. Ainda houve as tentativas do PREC poder funcionar lá. Claro que se desfez por desfasamento, apetites diferenciados, desinteresse, abulia, o que é costume nestas coisas.


Partindo do princípio de que não morreu, de que está à espera?
Está a ser reanimada, o espaço vai ser utilizado como uma pequena escola para crianças de introdução à multimédia, já se estão a fazer almoços e jantares. Aquele espaço está a ser revificado. O meu esforço foi no sentido de deixar a porta aberta. Conseguiu-se, até agora. Com a porta aberta, pode ter a certeza, vai continuar a haver quem entre e quem saia. O importante é ter a porta aberta.

Não tenho qualquer teoria que me alimente qualquer optimismo no que respeita a movimentos de massas. Tenho pena de não ter, mas não tenho. Em compensação, o etc é um espaço onde tenho provas de que algures, até aqui em Portugal, na remota Vila Real ou na Guarda, aparece gente nova com uma frescura ainda no estar, uma recusa idêntica à desta chafarica de se verem integrados em estruturas, para o caso culturais, entendidas como normais, e encontro muitos sinais disso.

Não vou dizer que é uma nova geração. Mas vai havendo uma soma de um mais um mais uma mais um, que me deixa nesse aspecto optimista. Seria pessimista, género Vasco Pulido Valente, se pudesse dizer: “Isto é uma choldra, tudo. A juventude toda é uma merda, consumista, alienada.” Isso não é verdadeiro. Em massa, com certeza. Mas fora da massa vai aparecendo gente que vem aqui tocar à campainha. Esta casa já fez nascer meia dúzia de aventuras editoriais. Mas também livrarias, espalhadas por aqui e por acolá, e que não estão lá para ganhar montes de massa. Isto não é uma casa de negócios, quando vêm aqui tocar à campainha, vêm para beber um bocadinho desta água. Eu digo sempre, isto é uma função poética, dá para fazer livrinhos e outras coisas.

Costumo dizer que sou tão magrinho que passo entre as cordas da chuva, e no meio desse mar encapelado [da edição portuguesa] a verdade é que esta pequena rolha flutua, vai para baixo, para cima, mas flutua. E aí não estou sozinho. Era impossível sozinho fazer isto. Tinha que ter, e tenho, cúmplices de tal modo fiéis, e fortes e firmes, aqueles capazes de comer pedras, e ainda assim continuarmos, por teimosia, por masoquismo.


Quer falar deles?
A Célia, o Rui Caeiro, o Alberto Pimenta. O meu cunhado Jorge. Um pequeno núcleo daqueles que aguentam tudo.


E duas ou três aventuras poéticas que sente que são a sua família?
Desde o meu antigo encantamente pela Ulisseia, mas também pela velha editora Inquérito, do Salgueiro. Foi-me dito pelo Luiz Pacheco que o velho Eduardo Salgueiro conseguiu aguentar a Editorial Inquérito 50 anos na falência. Eu ainda só vou fazer 35. Quem me dera poder chegar a esse número e dizer: há 50 anos que estamos falidos, mas de porta aberta.

Mais próximos de nós, um grande editor, maluco, nem por isso muito culto, mas com um instinto, um faro, e também um gosto de fazer a toda a prova, Fernando Ribeiro de Mello, das Edições Afrodite, o tal que queria fazer a revolução sexual em Portugal. Fez a dele, já não está mal. Meu grande amigo e sócio no arranque do etc.

Tive muita pena de ter ido abaixo o projecto da Hiena. Arrancou muito bem, aí estava um homem amante do livro [Rui Martiniano]. A Hiena começou com...


Uma tradução sua, “O Sorriso aos Pés da Escada”.
O [Henry] Miller, exactamente. E quando me vieram dizer até fiquei zangado. Porquê? Não foi por terem editado, nunca faço reedições, muito menos isso, uma coisa que tinha feito na Ulisseia há não sei quantos anos. Foi por não me ter dito nada. Então alguma vez eu ia levantar qualquer problema em o homem usar o prefácio ou a tradução ou coisa assim? Então, de todo em todo, não me estava a conhecer. O trabalho, aqui, quem quiser tira. O “copyright” é dos autores. O etc não tem “copyright”. É sabido que em “n” casos sou um editor pirata. Sim senhor, corro esse risco. Também lhe digo que essas piratarias nunca foram feitas sobre autores vivos, ponto um. Ponto dois, nunca eu retirei delas um tostão de lucros. Ponto três, parte das piratarias aqui feitas são de pequenos textos, laterais à obra dos autores, com tão pequena dimensão que até os vendedores do “copyright” não vendem por não terem interesse comercial nisso, o que quer dizer que se deixa de publicar uma quantidade de coisas por causa do “copyright”. Então, eu borro-me para o “copyright”, podendo apanhar uma denúncia, sim senhor,


Para passar os livros.
São ainda piratarias poéticas. Então tive pena – pena – de projectos como a Hiena, ou quando a Fenda foi abaixo – felizmente o Vasco [Santos] tem sabido pô-la em pé. De certo modo a Fenda também nasceu por causa da etc. Ou como a Contexto, que foi abaixo.

[e a Averno, que continua, mas já tinha acabado a terceira cassete. Foi assim que ficou por gravar a história de quando Herberto Helder e Vítor Silva Tavares foram do Tony dos Bifes para a Polícia Judiciária participar uma contrafacção]