segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Acordo ortográfico, Ivan Lessa

Recuperamos um artigo de Ivan Lessa, sobre o acordo ortográfico, publicado na BBC Brasil.

Pronto, começou a besteira. Os brasileiros estão há quase 20 anos (a bobajada começou em 1990) se esfalfando no sentido de uniformizar a língua portuguesa (palavra derivada de Portugal, país europeu da península ibérica) em sua ortografia.

Diga-se de passagem que só brasileiros e portugueses se “esfalfam”. Em países menos importantes, feito Moçambique e Angola, “dá-se duro” mesmo.

Brasileiro adora reforma ortográfica. Três acordos oficiais foram aprovados pelos países lusófonos (de luso, ou seja, relativo a Portugal ou o que é seu natural e habitante): em 1943, em 1971 e, em tese, essa que deverá entrar em vigor no ano que vem, 2008.

Isto, claro, se os portugueses (ou lusos, lusitanos ou ainda “nossos queridos primos e avozinhos”) concordarem pois, sem eles, nada feito.

É necessária a ratificação por pelo menos três países lusófonos. Saibam que, no Brasil, em 1995 quem aprovou a reforma foi o… o… exatamente, nosso Congresso. Podem rir agora.


As glórias de nossa língua
Segundo estudos fidedignos, o português (de Portugal, luso, lusitano etc.) é a quinta língua mais falada no mundo.

Cerca de 210 milhões de pessoas praticam a língua de Camões e José Sarney.
Segundo outros estudos, esses 210 milhões falam todos ao mesmo tempo e sem parar. E bem alto.

O português (de… creio que vocês já pegaram o espírito da coisa) tem duas grafias oficiais, o que dificulta o estabelecimento da língua como um dos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas, a ONU. Coisa que nos é indispensável.

Segundo acadêmicos e congressistas brasileiros, uma ortografia-padrão (falaremos logo adiante do hífen) facilitaria o intercâmbio cultural entre os países que falam o português, a saber, a Comunidade dos Países da Língua Portuguesa, ou CPLP, entre aqueles – aliás a maioria – que adoram siglas e acrônimos.

Esta Comunidade, com C maiúsculo (outra paixão nossa: o maiúsculo), é composta por oito países: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe (os dois são um só) e Timor Leste (o Timor Oeste está noutra).

Há um argumento segundo o qual os livros, principalmente os científicos e didáticos, circulariam então livremente entre os países, sem necessidade de revisão, como já acontece em terras onde o espanhol é falado e cantado em tango, bolero, rumba e escritos do Gabriel Garcia Márquez.

Argumenta-se ainda, como se não bastasse, que a padronização do ensino do português seria sentida (ai!) ao redor do mundo.


Espiquíngres
Antes que eu me esqueça: o inglês do Reino Unido e o inglês dos Estados Unidos, dois importantes países que fazem parte da ONU, não viram necessidade de criar uma Comunidade de Países da Língua Inglesa, que incluísse Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e outros menos cotados.

Os ingleses escrevem e montam “theatre” e os americanos e o resto da turma levam em cartaz “theater”.

Ninguém fica confuso com isso e todas as palavras terminadas, no Reino Unido, em “our” (labour), e nos Estados Unidos em “or” apenas (labor), continuam assim nos livros editados dos dois lados do Atlântico e lá pela Oceania também.

Nunca um australiano perdeu seu “centre”, ou “center” de gravidade com essa filigrana, para nós rebuscada e de difícil compreensão. E nem vou falar no que uns e outros anglófonos fazem do uso do S e do Z em certos verbos.

Em compensação, São Tomé e Príncipe não tem (não têm?) a menor idéia de qual a diferença entre “acto” e “ato”, “facto” e “fato”. Vivem confusos.

Guiné-Bissau só se preocupa com o que vai ser de seu hífen. O hífen nos é de suma importância.

Embora os portugueses vejam essa coisa toda como uma tolice muito grande e, práticos e educados que são, vão mandando a reforma para as calendas.


Tremas, tremei!
Ah, sim. Entre dezenas de outras besteiras, nossos lecsicógrafos e congreçistas querem abolir o trema. Saibam que este sinal diacrítico já foi abolido em Portugal em 1946. Foi como quando nós abolimos a escravidão: ninguém ligou.

O danado do hífen
Pedra fundamental da reforma proposta é o hífen.
Nossos lexicógrafos querem mantê-lo nos substantivos compostos (arco-íris, guarda-chuva) e nas palavras compostas (norte-americanos, anglo-americano).
Mas o hífen é para ser chutado para corner (e escanteio também) em palavras nas quais “se perdeu” (conforme dizem eles) a noção de composição. Feito paraquedas e paraquedista.

Na mesma prefixação, querem sempre um hífen antes do H. Ex e vice não mudam. Caso contrário, eles perdem a prazerosa pensão.

Guiné-Bissau quer saber, eu quero saber, o mundo inteiro quer saber, se vai ou não perder o hífen. Idem, Timor Leste.

As outras crises são passageiras. Fome, passa. Hífen, não.


The damned hyphen
Não sei se foi influência da bossa nova (ou bossa-nova?) ou do neorealismo (neo-realismo?) cinematográfico brasileiro, mas o raio da questão do hífen baixou aqui.

Na mais recente edição revista desse monumento-tesouro que é o Oxford English Dictionary, 16 mil palavras até agora hifenadas foram para as blicas.

Monumento-tesouro, por exemplo. Folha de parreira, outro. Todo mundo se acostumou a ler, ver e usar “fig-leaf”. De repente, tacam um “figleaf” na gente, nos deixando a todos com as vergonhas à mostra.

Motivo alegado? A rapidez com que movemos nossos dedos pelos teclados dos computadores. Acham que nossos dedos se cansaram de sair catando o tracinho horizontal para fazer a devida ligação. Sem hífen é mais prático.

Os poetas, que amam o hífen, para colorir este mundão sem graça, estão uma fúria. Acabou-se, ao menos para o Oxford, a “copper-coloured hair” e o “rosy-fingered dawn”. E por aí afora.

Uma tristeza. Resta o consolo de saber que não haverá multa ou prisão para quem não seguir o que é apenas sugestão e não lei do Oxford.

Na nossa reforma, nada vi até agora que esclareça ou fale dessa outra paixão nossa: obrigatoriedade, pena de prisão, pau-de-arara (pau de arara?) e um sem mundo de penas para quem não cumpra o burríssimo e inútil esquema