sexta-feira, 12 de junho de 2009

Quo vadis codex?, por Miguel Conde (1/5)

Começamos a publicar hoje um ensaio de Miguel Conde, primeira vez que tal acontece no Blogtailors. Devido à extensão do texto (elaborado para a cadeira de O livro e a edição na era digital, dirigida por José Afonso Furtado, na Pós-Graduação de Edição, da Universidade Católica Portuguesa) iremos publicá-lo em posts separados.

Miguel Conde é formado em História na Universidade Nova de Lisboa, graduou-se em Edição de Livros e Novos Suportes Digitais na Universidade Católica Portuguesa, e tem traduzido para diversas editoras.

Tem ainda as pós-graduações sobre o Médio Oriente Antigo, Civilizações Orientais e Estudos Mesoamericanos, sendo professor de Civilizações da América Pré-Colombina I na Universidade Católica Portuguesa.

Foi assistente editorial na Editorial Inquérito
APRESENTAÇÃO:
O livro está em mudança. Uma mudança física e conceptual, assente em novos pressupostos e nas realidades onde estamos inseridos. O que virá a ser o livro? Será algo diferente, ao qual numa centena de anos só reconheceremos o nome? E qual a rapidez com que se concluirá o ciclo no qual vivemos?

O «donde vimos e para onde vamos», que nos ocorre em múltiplas circunstâncias, aplica-se também a este objecto, e conceito, com o qual muitos se habituaram a conviver intimamente, o livro.

Génese e percurso histórico

A necessidade burocrática de um registo escrito veio a dar origem às criações menos previsíveis, aos mundos mais improváveis, a um dos prazeres mais saborosos e a uma nova mundivisão. Tudo isto podemos encontrar nos livros que hoje se encontram à nossa disposição; tal não invalida que o crescimento exponencial do conhecimento científico, de que hoje beneficiamos se deva, em boa parte, à disciplina proporcionada pela escrita.

Como Hillesund nos recorda, a passagem dos textos orais para a escrita visava precisamente torná-los mais duráveis, portáveis e exactos, contribuindo para que se ultrapassassem as barreiras espaciais e temporais (entre outras coisas, as comunicações deixaram de ter de ser obrigatoriamente presenciais), e foi nesse momento que a comunicação verbal se tornou essencialmente visual. A própria estrutura mental da sociedade que é alterada, pelo que o impacto de algo que damos hoje por adquirido, a escrita, não é de todo despiciendo.

O aparecimento da escrita estimula uma reestruturação mental. Por necessidades de memorização a comunicação pré-escrita era prolixa, redundante e agregativa. A escrita disciplinou o pensamento, tornando-o mais sintético e analítico, ainda que mais conservador. É certo que num primeiro momento isso se restringe a uma reduzida minoria mas é um fenómeno que se alargará com o passar do tempo.

Se o caminho até ao livro que conhecemos se iniciou com a criação de signos, a questão do suporte ocorre quase simultaneamente. Ao início, o ser humano adaptou-se aos materiais que a natureza lhe proporcionava, mas não tardou a criar e adaptar os que mais lhe convinha.

Tudo o que aceita uma fixação visual foi utilizado como suporte para a escrita. Contudo, nunca cessou a busca por aprimorar esse elemento fundamental para a leitura, de modo a fixar de modo mais duradouro o que se pretendia registar e facilitar o seu transporte. Esse tem sido o caminho, facilitar o manuseio, o transporte, e o próprio acesso. Assim, das tabuinhas mesopotâmicas passamos para os rolos em papiro, e destes para os codex. No mundo ocidental, entre toda uma panóplia de suportes (durante muito tempo não houve um verdadeiro monopólio), o papiro assume um predomínio que tardará a perder, e que se prolongará até c.400 d.C. A sua durabilidade no Egipto, terra seca, não se estendia a outras paragens e, gradualmente, o pergaminho foi ganhando terreno, tornando-se dominante com a ascensão do codex do início do período medieval. A forma antecessora do livro tal como o conhecemos, o rolo, era difícil de manusear, ainda que fácil de transportar. Convertido em codex, o manuseio torna-se mais fácil, e a procura de informação avulsa, assim como a elaboração de notas que personalizam e enriquecem a obra, são facilitadas.

Com o passar dos tempos, o suporte, a forma e o modo de produção foram-se alterando gradualmente. O âmbito alargado com que se discute o livro nos dias de hoje, no modo de produção do texto, o tipo de suporte, e até a sua essência, é inédito. As transições deram-se sempre gradualmente, o oposto do que se passa hoje, em que tudo é posto em causa ao mesmo tempo.

O outro grande momento na história dá-se com a imprensa de Gutenberg, um verdadeiro agente de mudança, que libertando o livro da cópia manuscrita vai estimular a circulação de textos. A estrutura mantém-se igual à do manuscrito mais tardio, e de ele bebe as referências que o enobrecem e credibilizam. O modo de produção altera-se com referentes muito próximos ao do estádio anterior, reproduzindo-se o que já tinha sido formalmente estabelecido mais de um milénio antes.

A impressão diminui a fragilidade do livro, cujos exemplares, até então, eram muitas vezes únicos, e vem estimular uma maior fixação da linguagem e o desenvolvimento do método científico. Com este tipo de solidificação em série começa a tecer-se uma unidade entre objecto, autor e obra.

O ciclo de um texto escrito conhece a escrita, o conservar e a leitura. E quando escrevemos em papel estamos a conservá-lo, a acervá-lo, disponibilizando-o para os demais. O novo livro, impresso, converte este conceito numa tecnologia de leitura altamente sofisticada. O ciclo textual muda, separando-se a escrita da produção, e alargando-se a penetração do livro na sociedade.

No século XVIII, com livros mais portáteis e mais económicos, generaliza-se a leitura solitária. Contudo, isto regista-se em paralelo com a disseminação da Bíblia, fundamental para o crescer exponencial da literacia (nomeadamente nos países protestantes), cuja leitura era frequentemente um acontecimento familiar, em que a leitura intensiva se manifestava.

Um outro fenómeno é o crescimento da imprensa, estimulada pelo ensino académico e pelo reforçar das línguas vernaculares. A imprensa criou um dinamismo muito próprio, dando um nova velocidade à comunicação e normalizando a escrita graças aos jornais que saíam em grande quantidade das tipografias europeias.

Mais tarde, a máquina de escrever funcionará como um estádio intermédio entre a imprensa acessível à leitura de qualquer um e a quase total autonomia da era informática. Cada um pode prensar os seus pensamentos e ideias. Uma certa autonomia «de imprensa» começou por aí, mas a representação e a armazenagem continuavam no mesmo suporte. Essa tipografia pessoal, e o papel químico quando aplicado, fizeram de nós impressores em pequena escala, muitas vezes para consumo próprio. Cremos, porém, que terá sido importante no caminho para o sentimento de autonomia, de auto-importância da dignidade da nossa escrita. A digitalização irá fazer a herege separação entre a armazenagem e a representação visual.

Escrever usando ferramentas digitais é hoje largamente predominante, e isto tem consequências na forma de pensar as palavras. Mesmo que a principal meio para chegar ao leitor passe pelo livro impresso, que confere uma dignidade desconhecida num pdf. Não é à toa que se fala da civilização do livro. A este devemos boa parte da forma como raciocinamos; porém, também nos transmite emoções, chegando ainda a tornar-se alvo de culto, no objecto da fé de increus. Uma fé que formou mentes e espíritos, e cuja crença torna mais difícil encarar o desaparecimento do livro tal como o conhecemos.

A forma como se escreve, e o suporte onde se regista a escrita, estão diferentes; com várias diferenças a surgirem quase ao mesmo tempo. Há uma multiplicidade de mudanças a acontecer em diferentes locais, num aparente caos evolutivo que se vai reunindo até se tornar noutra coisa. A invisibilidade dessas micro-evoluções dispersas dá a muitos saltos tecnológicos a aparência de um queimar de etapas.

Falamos de uma revolução que abana todas a estruturas, mas também a própria arquitectura da sociedade livresca. O texto electrónico vem revolucionar todos os campos da edição «…é, ao mesmo tempo, uma revolução da técnica de produção e reprodução dos textos, uma revolução no suporte da escrita e uma revolução das práticas de leitura.» (Furtado).

Esse espírito implantou-se mais rapidamente na imprensa, onde podemos ver já a funcionar o que potencia a ruptura com o nosso pensamento. Somos bombardeados com conhecimentos fragmentados, proto-democratizados, verborreicos. O escrito quotidianiza-se, as pessoas lêem; as que não lêem, ouvem e vêem ler com mais assiduidade. O mundo parece acessível, mesmo que na verdade não o seja. As pessoas discutem mais tempo, mais longe e acompanhadas por mais pessoas. Conhece-se e cria-se a ilusão de que se conhece. Divulgam-se viagens, histórias, pensamentos, mas também mulheres barbadas e homens bárbaros. Eis-nos no mundo moderno.
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