N. E.: texto publicado originalmente no blogue Sniper.
ALGUMAS HIPÓTESES REALISTAS PARA O FUTURO PRÓXIMO,
por José Vegar (*)
Como é do conhecimento daqueles que amavelmente seguem os escritos deste espaço, tenho acompanhado com a maior concentração possível o debate em torno do futuro dos autores e do livro, que se reacendeu um pouco por todo o mundo quando a Apple partilhou, há algumas semanas, a configuração essencial do iPad, o seu novo gadget. Uma primeira reflexão deu já origem a um post no Sniper («risco intenso para o escritor português»), mas alguns contributos recentes e decisivos de especialistas obrigam a novas linhas. Para este momento, isolo dois textos particularmente importantes, um publicado no Financial Times em 9 de Fevereiro («A page is turned») e outro de Jason Epstein, o real insider da edição, na New York Review of Books de 11 de Março («Publishing: The Revolutionary Future»).
Curiosamente, os dois textos, equivalentes em importância, unem-se numa linha de fundo estrutural: o máximo a que se pode chegar neste momento é a uma conjectura com um grau sério de realismo. Contudo, eles também se complementam. O do FT procura dar conta da estratégia dos grandes conglomerados editoriais globais face à existência do texto digital. A investigação trouxe à tona revelações insólitas. A resposta desses conglomerados é a de manter o modelo de produção assente no papel (edição-impressão-distribuição) e continuar a editar no modelo codex, reservando para o mercado do texto digital apenas a negociação do preço de venda dos livros em formato digital com as entidades que o distribuem e o irão distribuir. Esmiuçando esta estratégia, os editores não vão editar na plataforma digital, estando apenas preocupados, para já, em conseguir a melhor negociação possível com os grandes players deste ambiente, como a Amazon e a Apple.
É neste ponto fundamental que o texto de Epstein — com o peso de muitas décadas na edição — ganha um interesse maior, pois, para ele, a estratégia dos conglomerados é um total suicídio. No seu texto, Epstein garante que «the transition within the book publishing industry from physical inventory stored in a warehouse and trucked to retailers to digital files stored in cyberspace and delivered almost anywhere on earth as quickly and cheaply as e-mail is now underway and irreversible. This historic shift will radically transform worldwide book publishing, the cultures it affects and on which it depends».
Na sua longa reflexão, Epstein toca em todos os nós vitais da cadeia escritores-editores-distribuição-venda, mas neste post reflicto apenas sobre os que mais me tocam. Primeiro: o actual modelo empresarial da edição está condenado. Tal como defendi há umas semanas no Sniper, há alguns traços que convém destacar. A distribuição e a venda em livraria tradicional são os nós onde haverá mais impacto. A edição será totalmente reformulada, e em lugar da grande editora nacional de gestão vertical, pertencente ou não a uma multinacional, teremos nichos de editores, ligados além-fronteiras por interesses editoriais comuns e capazes de juntar numa rede privada e empresarial todas as funções necessárias: pesquisa de autores, edição, comunicação e venda. Aqui, será aparentemente decisivo o modo de venda, com a introdução de modelos como o da expiração da licença, o aluguer, a protecção do conteúdo face à ideologia do ficheiro gratuito. O processo não está ainda em marcha porque, escreve Epstein, «the resistance today by publishers to the onrushing digital future does not arise from fear of disruptive literacy, but from the understandable fear of their own obsolescence and the complexity of the digital transformation that awaits them [...]».
Para os autores, o futuro próximo é igualmente complexo. No «literary chaos of the digital future», como o classifica Epstein, várias tendências aparecem desenhadas. Um ponto essencial parece ser o da obtenção de um «contrato global de direitos de autor», que permita precisamente a venda directa do livro digital na Internet, ou seja, em todo o mundo. Depois de obtido, vislumbram-se várias possibilidades. Uma delas é a de o autor acantonar-se no espaço virtual de um editor de reputação, capaz de lhe dar visibilidade num directório global como o Google. Outra, que começa a ser adoptada pelos monstros best-sellers saxónicos, é a do autor, secundado por especialistas, assumir a comunicação e a venda. Qualquer que seja o cenário, a liderança em vendas e notoriedade será sempre dos autores que estejam posicionados, como existem já exemplos em Portugal, para comunicar em todas as plataformas, especialmente na televisão e na rede, e escrevam segundo as regras mainstream do momento. Neste cenário, vários problemas graves se levantam. Talvez o mais importante seja o da preservação segura e durável da cultura e do conhecimento, indubitavelmente transmitidos, acima de tudo, pelo livro. Em que suporte transmitir os textos às bibliotecas, de que modo assegurar a sua inviolabilidade eterna, como garantir a disponibilização aos leitores dos fundos de livros (um problema já actual, dada a alta rotatividade dos títulos nas livrarias), estes são temas em aberto. Uma única certeza existe neste processo: tal como em todas as outras áreas do mundo contemporâneo, há muito tempo, na verdade desde 1850, que a sociedade humana não acelerava tanto.
(*) José Vegar é autor dos livros de ficção Cerco a um Duro e A Balada do Subúrbio e dos livros de não-ficção O Inimigo Sem Rosto — Fraude e Corrupção em Portugal (com Maria José Morgado) e Serviços Secretos Portugueses. Frequenta o doutoramento em Sociologia no ISCTE. Escreve nos blogues sniper e operaçãosniper.
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