segunda-feira, 5 de abril de 2010

Opinião: Trecho da parte um, caderno B, capítulo quatro de Tzimtzum!, por Afonso Cruz

TRECHO DA PARTE UM, CADERNO B, CAPÍTULO QUATRO DE TZIMTZUM!,
por Afonso Cruz (*)
Um cão pequenino, de pêlo crespo, corria atrás da cauda.

— Deus é como um cão atrás da cauda — disse o padre.

— Já sei. Quando nos voltamos, Ele já lá não está. Como a cauda dum cão — disse Moisés Kupka.

— Vejo que se lembra da conversa que tivemos no outro dia, mas agora a metáfora é outra, Sr. Kupka: é o infinito. Naquele movimento está o infinito. Um cão atrás da cauda é um tratado de Teologia, uma suma mais do que teológica, S. Tomás de Aquino que me perdoe. Um cão atrás da cauda é um movimento eterno, um rodar perpétuo até àquele lugar impossível que é Deus (para o crente) e a cauda (para o cachorro). Um homem, quando pensa caminhar, apenas roda sobre si mesmo. Já ouviu falar do Mevlana?

— O sufi que rodopiava? Rumi? — interrompeu uma das Rodrigues, a mais magra.

— Precisamente — confirmou o padre. — Rodopiava para estar com Deus e pôs os seus discípulos todos a dançar assim, para também eles estarem com Deus. Na verdade, todos os homens rodopiam. Pensam que vão a direito como uma régua, mas andam às voltas, dão voltas em torno de si mesmos. Todos procuram a sua cauda. Não passamos de ouroboros, aquelas serpentes que, como as pescadinhas, engolem o próprio rabo. Sabia, Sr. Kupka, que Friedrich August Kekulé von Stradonitz sonhou com uma serpente destas? Foi graças a tal onirismo que chegou à forma do anel de benzeno. Sabe o que é o anel de benzeno? É um sufi a rodopiar sobre si mesmo. É c6h6, um hidrocarboneto. A sua estrutura molecular foi descoberta porque Kekulé sonhou com uma serpente em 1865. Não precisava de ter sonhado com ouroboros para chegar a uma conclusão tão evidente, bastava olhar para o modo como um cão persegue a cauda e descobriria a estrutura molecular do benzeno, bem como vários outros mistérios divinos de muito maior relevância. O Sr. Kupka, quando viaja, não faz senão o mesmo que este cão que vê aqui a perseguir o rabo. Dá voltas pelo mundo para se ver a si e, quando não consegue, volta a tentar, viaja mais. Anda atrás da cauda. E reafirmo: tudo o que nós, seres quase humanos, procuramos é a nossa própria cauda.

— Deus, para o crente — rematou a Rodrigues mais gorda.

— Isso, isso. Andamos todos em órbita de nós mesmos à procura duma porta que nos leve para dentro da nossa alma. Procuramos entrar dentro de nós, mas é um mundo que nos está vedado.

— O bacalhau está uma delícia — comentou o Sr. Rodrigues.

— Uma delícia — corroborou a priminha. Mas ninguém a ouvia.

O cão continuava a rodar sobre si mesmo, como o dervixe persa, o Mevlana, e, segundo consta, o anel de benzeno.

(*) Nasceu em 1971 e é autor dos livros A Carne de Deus (Bertrand, 2008) e Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal, 2009). Também é músico (da banda The Soaked Lamb), ilustrador, e realizador.
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