TRANSAcção,
por José Rentes de Carvalho (*)
É uma vergonha. Ou melhor: são duas vergonhas, e não adianta esconder. Confesso já. Mesmo que não me livre do peso, fica o consolo de ter demonstrado carácter.
Primeira vergonha: tenho uma coisa com Mónica Marques. Tentarei explicar adiante as circunstâncias que a originaram, tanto mais bizarras quanto eu nada sei da pessoa.
Referir a segunda vergonha dói mais ainda: daqui a escassos meses faço 80 anos.
Ambos estes elementos emprestam um sabor amargo a uma situação que algures, por exemplo na Índia ou no Iémen, é corrente nos usos e sancionada pelo Livro. O proibido entre nós, o geronte que se oferece uma garota de 10 anos ou 12 anos, é nessas paragens coisa corriqueira, olhada até como sensível conforto da velhice.
Continuando. Entre os vinte e poucos e os quase 40, muito andei entre o Rio e São Paulo. Não juro que tenha sido tempo paradisíaco, mas, por entre os trambolhões, houve também horas de folia, em que evas, dextras nas coisas do feitiço e do candomblé, me tentaram com mais de uma maçã.
São isso episódios de meio século passado, e a memória vai diluindo a lembrança dos corpos, as juras feitas. Mantém-se, mas ténue, a visão de um sorriso, uma meiguice, a luz da tarde num apartamento da avenida Atlântica, o rosto de Donatella, enfim, momentos desses. No todo, são como que acontecimentos de uma vida que, de tão agitada, hoje me parece alheia e contrasta forte com a pacatez dos meus dias.
Infelizmente, uns meses atrás, oito, para ser exacto, essa pacatez foi perturbada quando pessoa amiga, conhecedora das citadas vivências, me ofereceu um livro intitulado Transa Atlântica, acrescentando, cúmplice, que de certeza o acharia interessante.
— Marques? Do García Márquez?
— Não. Da Mónica Marques.
Desconhecia a dama, transa não era vocábulo do meu tempo, mas lá o encontrei no Houaiss, e dos significados escolhi o que melhor acompanhava as pernas nuas e a mini-saia da capa.
Devo dizer que, de começo, estranhei e a leitura não me entusiasmou. Mas, à medida que nela progredia, fui caindo de susto em assombro, menos por culpa da autora do que pelo transtornado desejo que sempre tenho de ser personagem nas histórias doutrem. Se a coisa me atrai, em vez de ler tresleio, quando dou por mim estou enterrado até às orelhas nas reviravoltas da vida alheia. Mas, desta vez, exagerei mais do que costumo, fazendo do que lia o pano de fundo da minha alucinação.
Assim me vi num éden sem passado nem futuro, só presente, abundante de festa e sol, caipirinhas, praias douradas, mónicas púberes e menos púberes, donatellas maduras, mulatas com o sangue de sete nações, aqui e ali um garanhão, além uma corça, acolá um doce veado.
Estava eu nesse enlevo, certo de que se iriam repetir os gozos dos meus melhores anos, quando, em modo igual àquele com que Vénus e Ursula Andress («a major sex symbol of the 1960s and James Bond object of desire in Dr. No») saem das ondas, se ergueu radiante uma jovem esbelta, felina e pernilonga que, estendendo as mãos…
Os abanões da minha mulher, perguntando se me tinha dado alguma coisa — com os idosos nunca se sabe — demoraram a tirar-me do devaneio, mas, por fim, fechando o livro e escondendo a capa, balbuciei que me sentia cansado.
— Leitura interessante?
Tomei o modo afectado de quem só lê a Agustina:
— Nestes modernos, é sexo e mais sexo, bebida, festa… A rapariga escreve escorreito, é original e mostra talento…
— Rapariga? Conhece-la?
Com característica leviandade feminina, virou-me as costas, desinteressada da resposta.
À noite, terminei o livro e sonhei o resto. Desde então, quando o abro, Mónica Marques, creio que é ela, sai dentre as páginas e dá-me o braço, sussurra ao ouvido que não tenho que ir fazer 80 anos. Venda a alma, deixe-me levar, e ela mostrará como se volta aos 30.
(*) De ascendência transmontana, J. Rentes de Carvalho nasceu em 1930, em Vila Nova de Gaia. Cursou Românicas e Direito, em Lisboa, antes de abandonar o país por motivos políticos. Viveu no Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque, Paris, antes de se fixar em Amesterdão, em 1956. Licenciou-se na Universidade de Amesterdão, onde foi docente de Literatura Portuguesa. Desde 1988 que se dedica exclusivamente à escrita, tendo uma colaboração vasta em periódicos portugueses, brasileiros, belgas e holandeses. A sua bibliografia inclui romances, contos, diário, crónica e guias de viagens. Publicou, pela Quetzal Editores Com os Holandeses (crónicas) e Ernestina (romance).
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