sexta-feira, 9 de abril de 2010

Opinião: Recursos humanos e literatura, por António Manuel Venda

RECURSOS HUMANOS E LITERATURA,
por António Manuel Venda (*)

A ideia não foi minha, foi de quem promoveu a edição deste conjunto de artigos; deram-me um mote, «o autor como um recurso humano». Para a maioria das pessoas que possam vir a ler este texto, devo explicar porquê. É que, apesar de eu escrever histórias quase sempre do campo, e cada vez mais histórias que se passam pelo campo à volta da minha casa — de onde, por mais alta que seja a árvore a que se suba, não se avista outra casa —, apesar disso, tenho alguma ligação a coisas, digamos assim, mais cosmopolitas. Os meus estudos andaram bem longe das Letras, em Gestão de Empresas, e o trabalho levou-me a ser director de uma revista nesse âmbito e, mais tarde, a criar a minha própria revista. E esta revista nem foi pelo tema generalista da gestão, centrou-se apenas numa das áreas, a que diz respeito à gestão das pessoas nas organizações, vulgarmente conhecida por gestão de recursos humanos.

Ou seja, o mote surgiu desta minha história complicada. De qualquer forma, em termos de gestão de recursos humanos, nunca se falaria de um autor como «um recurso humano», tanto mais que a expressão nunca é aí usada no singular. Nem por certo se usaria uma expressão ainda mais em voga, «capital humano», ou a versão inglesa (human capital), que muitos dos portugueses da área estranhamente preferem (há consultoras com departamentos não de «capital humano» mas de human capital, assim como executive directors em vez de «directores executivos», e por aí adiante). Explico… No meio editorial, se falarmos de recursos humanos ou de capital humano — pela lógica da gestão de recursos humanos —, referimo-nos às pessoas que lá trabalham; nas editoras, nas gráficas, nas distribuidoras, nas livrarias… Se nos centrarmos numa editora, serão as pessoas dessa mesma editora, ficando os autores de fora. Por aí, nunca os autores apareceriam como recursos humanos, nem sequer como uma outra coisa de que agora tanto fala quem está ligado a gestão de recursos humanos: o talento. Um talento seria uma pessoa muito importante das que trabalham na editora, um editor que conseguisse publicar livros geniais, com resultados fantásticos, um designer que fizesse capas fabulosas, um revisor capaz de transformar um livro cheio de erros numa obra-prima.

Os autores estão mesmo fora. Outra área que não a de recursos humanos poderá acolhê-los, mas a verdade é que eu nem sei bem qual possa ser. Se pensarmos no caso do futebol, aos jogadores agora chama-se activos, apesar de alguns serem absolutamente passivos, como se percebe recordando determinadas contratações do meu clube, o Sporting, nos últimos anos (Purovic, Farnerud, Caicedo, Angulo…).

Por falar em futebol, lembro-me de uma reportagem publicada na revista que referi no início, uma reportagem com o Benfica, em que também entrava a respectiva directora de recursos humanos. Para as centenas de funcionários, havia muito trabalho a fazer, mas notava-se que esse trabalho não chegava aos futebolistas (que eram também eles funcionários, enquanto os autores não o são nas editoras). O que estava definido no clube, por exemplo, em termos de recrutamento e selecção, formação, avaliação de desempenho, sistemas de compensação (alguns aspectos tradicionais da gestão de recursos humanos), era para todos os funcionários excepto os atletas. Não chegava aos futebolistas, como nas editoras não chega aos autores. Nem se justifica, nem eles provavelmente haveriam de querer.

Desculpem maçar-vos com isto.

(*) Nasceu em Monchique, em 1968. Publicou nove livros de ficção, sendo o mais recente o romance Uma Noite com o Fogo. Destes, alguns receberam prémios literários de instituições como o Instituto Abel Salazar, o Centro Nacional de Cultura, a Câmara Municipal de Almada, a Secretaria de Estado da Cultura e a Sociedade Portuguesa de Autores. Mantém inéditos dois livros de histórias (O Bilhete do Senhor Scolari e Políticos, Esses Animais) e uma primeira aventura de um pequeno super-herói chamado Zeca Zângão (Mandriões na Roda Gigante). Trabalha actualmente em diversos projectos de ficção. Vive no Alentejo e escreve no blogue Floresta do Sul.
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