segunda-feira, 12 de abril de 2010

Opinião: Este livro e não outro, por Margarida Ferra

ESTE LIVRO E NÃO OUTRO,
por Margarida Ferra (*)

Todas as noites, em frente à estante, tento convencer os meus filhos a lermos determinado livro e não outro. A escolha é negociada em plenários familiares, cheios de argumentos e razões. Para o rapaz, é importante que nas histórias não entrem lobos (mesmo que sejam a fingir) ou ursos (mesmo que sejam bons). Para a rapariga, pode ser essencial que o livro tenha o seu nome escrito algures, que tenha qualquer coisa cor-de-rosa, que seja uma história que não contamos há muito tempo ou uma que já decorou. Tudo depende da noite. Para mim, geralmente o que importa é que seja uma história curta, e só uma, uma, perceberam bem?, amanhã há mais.

Esta é a linha final da vida dos livros, a estante: o último lugar que lhes foi destinado e onde, mais uma vez, lado a lado com outros volumes, são escolhidos e lidos ou preteridos e esquecidos. Até aí, houve todo um percurso de argumentos, razões, listas de pontos fortes, discursos inflamados sobre livros que alguém leu, dirigidos a alguém que se quer convencer a fazer qualquer coisa com esse mesmo livro.

Nesta corrente de persuasão, cabe-me ser convencida pelos editores de que este livro é o melhor entre muitos, por isso o publicamos. Vou ouvindo falar do livro enquanto se compram direitos e se planeiam os próximos meses de edição, leio qualquer coisa na imprensa estrangeira, sou interrompida por uma editora encantada que me lê alto passagens na língua original (quando pode), ouço-a falar ao telefone com o tradutor, explicar-lhe de que livro se trata e porque é ideal para ser traduzido por aquela pessoa, ouço-a deleitar-se com o texto em português, interrompe-me para me ler algumas passagens, elogiar o tradutor. Vejo depois o revisor entrar no escritório com o saco das provas revistas, o Carlos ou o Leal ou o João a discutirem com a Lúcia os detalhes, as opções, as longas investigações motivadas por uma palavra duvidosa.

É mais ou menos nessa altura que procuro ler o que ainda não li sobre o livro, espreito o original (quando posso), espero pacientemente pelo PDF final. E vou falando dele a quem escreve sobre livros, deixando umas notas no Facebook, talvez no blogue, e mails, muitos mails, a explicar que o autor vem cá, porque já tínhamos falado do livro ao Francisco Guedes, à Manuela Ribeiro, que se interessaram também pelo autor, pelo livro novo que vamos publicar e que sim, que tem tudo a ver com as Correntes D’Escritas, vão ver se o podem receber. Procuro, então, as palavras certas para explicar aos jornalistas que o livro é sobre isto ou aquilo, que interessou a este, que dele se disse que. Procuro o jornalista a quem me parece que poderia interessar mais o livro, o que mais se podia motivar a escrever sobre ele. Se o encontrar, falo-lhe do livro. Se forem muitos livros os que me parece que poderiam interessar-lhe, talvez seja melhor encontrarmo-nos para lhe entregar os exemplares, que entretanto já recebemos. E levo comigo essa sensação que me ficou de quando chegaram as caixas, eu, já tomada pelo entusiasmo alheio e pelo meu próprio, fui outra vez surpreendida pelas capas, agora posso tocar-lhes, e aprecio-lhes a temperatura (sempre frios, frescos, um grau de que me lembro ainda do tempo das livrarias, quando chegavam as caixas das novidades).

Depois, há vidas com sorte, posso conseguir estar presente no momento em que o autor vê o livro pela primeira vez. Ver-lhe o olhar de espanto, o modo como gosta ou duvida da capa, como pergunta, a medo, se a tradução está boa, o sorriso cúmplice quando descobre a vinheta. Ou oiço ao longe o telefonema do Francisco a chamá-lo, dizer-lhe que já cá estão os exemplares, ou simplesmente chamá-lo com um outro pretexto só pelo prazer de o surpreender um pouco mais. Ou enviamo-lhes os livros pelo correio, se moram longe, e posso ficar à espera do e-mail, desejando que, desta vez, o José Rentes de Carvalho goste tanto quanto do livro anterior e que não termine a mensagem sem me convidar, mais uma vez, para ir a Trás-os-Montes, quase me ameaçando a vir a Lisboa buscar-me por um braço, a mim e à Quetzal em peso, por todos os braços, se não formos lá ver ao vivo como é o cenário de Ernestina.

E todos os dias chego a casa, os banhos, os desenhos animados, o jantar, talvez no meio disso ainda um livro, e depois a hora de ir para a cama. As crianças gostam de rituais e um deles é precisamente o plenário da biblioteca: Que livro vamos ler hoje? Tem lobos? Tem ursos? Tem cinta? Vai ter montras? É cor-de-rosa? É em estrangeiro? Sabes de cor? Por favor, só um, tento convencê-los e escapar aos argumentos deles, atirados com um entusiasmo que não conseguirei igualar na manhã seguinte.

(*) Margarida Ferra tem 32 anos e é licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. É responsável, desde Janeiro de 2009, pela área de comunicação da Quetzal Editores.
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