sexta-feira, 16 de abril de 2010

Opinião: De que falamos quando falamos de Carver, por Lúcia Pinho e Melo

DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE CARVER,
por Lúcia Pinho e Melo (*)

«To carve» significa dividir em partes pelo corte; cortar de forma a obter a forma desejada; cinzelar; esculpir.

Quando lemos a prosa limpa, seca, depuradíssima, de Raymond Carver, é com esse trabalho de esculpir, radical e impiedoso, levado a cabo sem compromissos, que inevitavelmente nos confrontamos. Sobretudo em What We Talk About When We Talk About Love — a recolha de contos que tornou famoso o autor, até então pouco conhecido, de Will You Please Be Quiet, Please?.

Numa entrevista de 1986, dois anos após a publicação da terceira colectânea, Carver falava assim do seu inconfundível estilo: «Se puderes retirar o que quer que seja, retira-o. Assim, darás mais força à escrita. Reduz, reduz e reduz ainda mais.»

Porém, desde a sua morte, em 1988, corriam rumores de que o estilo minimalista de Carver não se devia inteiramente ao seu próprio processo criativo. E sabemos agora, com a publicação de Beginners — versão original do conjunto de 17 short stories posteriormente intitulado What We Talk About When We Talk About Love —, que o autor desse intenso trabalho de depuração não foi Carver, mas o seu editor e amigo Gordon Lish.

Segundo artigos do jornal The Guardian de 17 e 24 de Outubro de 2009, Lish não só cortou como o fez «até ao osso», reescreveu, renomeou (contos e personagens), refez parágrafos e suprimiu comparações e metáforas; «e não só encurtou muito as histórias como as tornou mais elípticas, dando-lhes um fim mais aberto, tornando-as mais sombrias, mais violentas, mais duras, mais classe operária e menos intelectuais, mudando-lhes o tom e a atitude geral perante as mulheres».

A intervenção drástica do então editor sénior da Alfred A. Knopf — que muitos consideram mais censor do que editor — desgostou Carver, humilhou-o. Quando recebeu a versão final de What We Talk About When We Talk About Love, escreveu a Lish, exigindo que suspendesse a impressão. No entanto, uma semana mais tarde, noutra carta, confessava-se-lhe empolgado com o livro e pedia-lhe apenas uma ou outra alteração (Telegraph, 30 de Outubro de 2009).

Ainda que a emoção que nos provoca a escrita de Carver em What We Talk About When We Talk About Love — o assombro perante a formulação justa, desapaixonada e, ainda assim, tão envolvente e próxima da alma humana — releve, em grande parte, da pena de Lish, como agora se sabe, somos tentados a julgar abusivo o alcance do editing do texto original de Beginners. Sobretudo ao observar-se a sua reprodução gráfica na transcrição publicada na revista The New Yorker («“Beginners,” edited — the transformation of a Raymond Carver classic»), em que se assinalam todas as supressões (com a aposição de um traço horizontal sobre as palavras eliminadas), todos os acrescentos (a negro) e todos os novos parágrafos introduzidos (com o respectivo símbolo).

A recente edição de Beginners, pela Jonathan Cape, apadrinhada pela viúva de Carver, Tess Gallagher, em que William L. Stull e Maureen P. Carroll restauram a versão original da obra, demonstra mais aprofundadamente a «destruição» levada a cabo por Lish (em cerca de 50 por cento) do manuscrito apresentado por Carver em 1980 à Alfred A. Knopf, hoje preservado na Lilly Library da Universidade do Indiana. Nela, cada um dos contos é anotado com uma resenha das respectivas alterações sofridas desde, em alguns casos, a sua prévia publicação em revistas, passando por What We Talk About When We Talk About Love, até agora.

Não se pretende aprofundar aqui as questões levantadas pela edição (no sentido estrito de editing), que são sempre controversas (haja em vista toda a publicação de inéditos póstumos); nem advogar a causa do autor e a inviolabilidade da obra, apesar da sua imperfeição; nem a do supremo interesse do leitor, em benefício do qual se justifica uma acção mais severa do editor sobre o manuscrito (excluindo à partida, naturalmente, a persecução de outros objectivos menos legítimos). A história editorial dos clássicos modernos está repleta de casos semelhantes ao de Carver e de Beginners / What We Talk About When We Talk About Love. Porém, este — empolgante na perspectiva do editor, do estudioso e do leitor, angustiante na do escritor — distingue-se dos demais por ser uma história que acaba onde começa e que começa com a palavra de Carver. Agora, em Beginners, como no início, menos cirúrgica, mais voluptuosa, mais cheia de seiva, mais imperfeita. Justamente, menos carveriana.

De que falamos, afinal, quando falamos de Carver?

Com a recém-publicada edição de O Que Sabemos do Amor (título que se atribuiu em Portugal a Beginners), e com uma nova tradução de De Que Falamos Quando Falamos de Amor (a publicar até ao fim de 2010), ambas pela Quetzal Editores, o leitor saberá.

(*) Lúcia Pinho e Melo nasceu em Aveiro. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e começou a trabalhar com livros em Frankfurt, no Centro do Livro e do Disco de Língua Portuguesa. Antes de se dedicar exclusivamente à edição, fez traduções em regime freelance e deu aulas de Português. Foi gestora de direitos estrangeiros e coordenadora editorial da revista A Phala, na Assírio & Alvim, onde também fez trabalho de edição e leitura de manuscritos. Foi editora de autores portugueses na Bertrand Editora e é, actualmente, editora na Quetzal Editores.
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