segunda-feira, 29 de março de 2010

Opinião: Vou lá conhecer leitores, por Manuel Jorge Marmelo

VOU LÁ CONHECER LEITORES,
por Manuel Jorge Marmelo (*)

Há que saber ver as coisas pelo lado bom que sempre têm. Mesmo o mais destrambelhado e discreto dos escritores beneficia da admiração de um pequeno grupo de leitores, nem que sejam a própria mãe, duas vizinhas viúvas, quatro amigos e um gato. As vantagens desta condição são bastante óbvias: conhecem-se os leitores pelo nome e pode conversar-se com eles, quando se vai comprar o pão, e abraçá-los e beijá-los muito amiúde (para além da companhia que imagino que um gato sempre faça).

Por muito que isso me contrarie durante o resto do ano, não me incomoda nada ser um escritor pouco lido nos quatro dias que duram as Correntes d’Escritas, da Póvoa de Varzim. Os poucos leitores que tenho mimam-me, ali, como se eu fosse um escritor a sério. Pedem-me autógrafos, dispõem-se a ouvir-me gaguejar e conversam comigo. Melhor do que isto só se conseguisse conquistar um leitor novo, coisa que, por incrível que pareça, às vezes também acontece.

Os escritores de verdade acolhem-me cordialmente como se eu fosse um entre iguais, o que, bem vistas as coisas, é o melhor testemunho do carácter tolerante das pessoas que se dedicam à literatura. São seres especiais, e isso nota-se perfeitamente nestas pequenas coisas, ainda que, à noite, no bar do hotel, se comportem como os mortais comuns. Contam anedotas, dão gargalhadas e bebem cerveja e vinho. Gente impecável.

Sinto-me, pois, um indivíduo muito bem-aventurado. A equipa que prepara e faz acontecer as Correntes trata-me com simpatia, e alguns fizeram-se meus amigos. Parece que apreciam ter-me por lá, uma vez que me convidam a regressar todos os anos. Eu resmungo (está-me na massa do sangue), argumento que já não sei mais o que dizer, que é quase pecado ocupar espaço no mesmo palco onde vão escritores de verdade contar belas histórias e dizer coisas inteligentes, que tenho um aparelho nos dentes e, por isso, sou capaz de me babar em público, o que não é particularmente bonito de se ver — mas a Manuela Ribeiro convence-me quase sempre a voltar à Póvoa.

Este ano, para me demover, tenho quase certeza que arranjou forma de conspirar com a única pessoa que poderia convencer-me, a qual, por gostar de mim mais do que provavelmente mereço, me diz coisas muito encorajadoras e bonitas, as quais chegam a persuadir-me de que sou capaz de ir às Correntes fazer alguma coisa minimamente aceitável. E, depois, a Manuela contou-me como um dos motoristas da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, o Joaquim, lê aquilo que eu escrevo, se deixa tocar e vai mostrá-lo a outras pessoas. Um sujeito enternece-se, não há como negá-lo.

Não sei o que lhes dá para me terem tanto afecto, mas eu gosto. Provavelmente é um defeito só meu e que não afecta os escritores a sério, mas, enquanto sujeito que escreve livros (e contribui decisivamente para a falência das editoras que o publicam), eu sou como um bebé que necessita de muito mimo e que lhe mudem as fraldas frequentemente. Careço de ter por perto os meus 15 ou 20 leitores, de ver-lhes os rostos e escutar-lhes as vozes, para saber que são de verdade, que existem realmente e que ainda não desistiram de ler o que escrevo, por muito tolo que isso me pareça durante a maior parte do tempo.

Regresso, pois, às Correntes uma vez mais. Os meus leitores são poucos, e eu conheço-os a (quase) todos. Tenho péssima memória para decorar nomes, mas não me esqueço dos rostos. E vão lá estar também os amigos, os que fui fazendo nestes dez anos. Hei-de abraçar todos. No ano que vem, se calhar, convencem-me a voltar. Como o Ruy Duarte de Carvalho, atravessando Angola para ir ao Namibe visitar os pastores macubais, cubro a escassa distância que vai do Porto à Póvoa com o sobressalto morno do reencontro antecipado. É bom, muito bom, ir lá conhecer leitores.

(*) Manuel Jorge Marmelo nasceu no Porto em 1971. É jornalista e estreou-se na literatura em 1996. É autor de vários romances — de entre os quais se destacam As Mulheres Deviam Vir com Livro de Instruções (1999) e O Amor é para os Parvos (2000) —, volumes de contos e livros infantis, sendo presença assídua em colectâneas nacionais e estrangeiras. É o mais jovem biografado do Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX. Publicou na Quetzal Editores As Sereias do Mindelo.
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