UMA QUESTÃO DE PALAVRA,
por Luís Diamantino (*)
Pedem-me que escreva um texto sobre isto ou sobre aquilo. Mais isto do que aquilo. Mas eu não sei o que dizer sobre aquilo, muito menos sobre isto. O que está mais perto vê-se sempre pior, ou será o contrário?!
Esperam, possivelmente, um texto muito bem vestido, muito bem calçado e à prova de crítica. Procurei-o em todos os arquivos da minha já fraca memória, mas não o encontrei; procurei-o em todas as gavetas atulhadas de textos, mas não dei por ele; procurei-o na lógica instalada no ficheiro do meu computador, mas talvez tal texto ainda não tenha sido escrito.
Gostaria de falar sobre isto como se nada mais existisse, ou falar da existência disto ou daquilo, mas a dúvida da existência permanece inalterada…
Lá fui juntando sílabas, palavras pouco acostumadas a encontrarem-se nestes textos, previsivelmente oficiais, e descubro novas ideias, realidades escondidas na penumbra de uma ficção por inventar. É que, às vezes, damos de caras com palavras que já não encontrávamos há muito tempo. Olhamo-las nos olhos e perguntamo-nos se não as conhecemos de algum lado. Será um bom início de conversa, poderemos mesmo levá-las a passear, talvez assistir a um encontro cultural, daqueles com muita gente a falar sobre a invenção da palavra…
De braço dado e de olhos nos olhos, lá fomos até uma biblioteca, para encher o depósito das palavras raras. Tarefa difícil, pois tivemos de recusar tantas e tantas, gastas por uso indiscriminado, algumas delas perfeitamente ocas, outras perdidas no turbilhão da comunicação dos nossos tempos. Transportamo-las com imenso cuidado, não se fossem quebrar ou escapar por qualquer diálogo sem sentido.
Já em pleno encontro de palavras, assistimos à pirotecnia de ritmos e sons africanos, sul-americanos e ibéricos. As palavras vestiam-se e despiam-se com tanta frequência que pareciam outras: mais enleantes, mais doces ou mais duras. Mais cruéis, mais carinhosas ou mais sufocantes, levando ao riso ou tocando a alma num passe de mágica.
Palavras coloridas de opiniões e libertas das amarras sociais. Palavras recheadas de histórias infindáveis, sempre recomeçadas noutra conversa. Palavras pontiagudas de arestas firmes, sulcando fundo o diálogo, para uma sementeira única.
E, nesta multidão de formas e de cores, descobrimos outros sentidos e esquecemos o sentido único obrigatório que nos querem fazer seguir.
No fim da festa, saímos carregados com palavras como «diferença», «afecto», «imaginação», «amizade»…
No palco, casam-se palavras da mesma família: «livro», «escritor», «editor», «tradutor», «leitor»…
Descemos as escadas, porque no elevador não caibo com as palavras que trago dentro de mim e com as que arrasto até à rua, num abraço de «até para o ano» ou «até ao próximo livro».
(*) Nasceu a 5 de Fevereiro de 1956. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Iniciou as funções docentes em 1980-1981, na Escola Secundária de Águas Santas, e integrou o corpo docente da Escola Secundária Eça de Queirós, na Póvoa de Varzim, entre 1982 e 2006. É, desde 1996, vereador a tempo inteiro na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, onde já assumiu pelouros como os do Desporto, do Turismo, da Acção Social, da Juventude, da Educação e da Cultura. No presente mandato, é vereador da Educação e Cultura, pelouro responsável pela criação e organização do Encontro de Escritores de Expressão Ibérica Correntes D’Escritas.
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