UM DIA TUDO ISTO SERÁ TEU,
por Possidónio Cachapa (*)
CENA 1
EXT. DIA. FRENTE AO PALÁCIO DAS CORRENTES
O dia está particularmente frio. Um grande número de pessoas aperta-se em frente aos vidros da feira do livro a fumar, a conversar (pressupõe-se pelo gesticular) sobre a comodidade das cadeiras do auditório e o tempo em geral. Um HOMEM SEGURANDO UMA MALA cheia de livros aproxima-se de um GRUPO DE CARAS CONHECIDAS, ostentando um sorriso promissor, mas elas ignoram-no, virando-lhes as costas enquanto lançam fumo para o ar.
HOMEM DA MALA
Pois claro, pois claro... Essas coisas são assim.
As caras conhecidas viram-lhe ostensivamente as costas, olhando-o de soslaio. Ele não as desencoraja e contorna-as, de forma a ficar de frente para a conversa.
HOMEM DA MALA
Pois claro, pois claro. Há sempre gente que, enfim...
Um carro luxuoso da organização pára numa travagem rápida. A porta abre-se e um ESCRITOR JOVEM, de sucesso, sai de lá, já sorridente, a caneta na mão pronta para o autógrafo. Um RAPAZ E UMA RAPARIGA, vestidos de negro, reconhecem-no, dizem o seu nome em uníssono e correm para ele. O rapaz mais rápido do que a rapariga. Mas, antes que o possam alcançar, um ESCRIBA ESPERANÇADO ganha-lhes e abraça-o.
ESCRIBA ESPERANÇADO
Até que enfim, pá. Já tinha perguntado por ti. Onde é que andará a nossa estrela internacional?
Ri-se muito e não larga o braço ao outro, que vai respondendo, olhando em volta, para ver se há alguém a quem lhe seja mais útil falar.
ESCRITOR JOVEM
Ah, como é que vai? Não o via desde... Foi em Sarajevo ou na Nova Caledónia?
O escriba solta-lhe o braço, um bocadinho amuado.
ESCRIBA ESPERANÇADO
Arouca, a semana passada, no Encontro de Poesia a Metro...
O outro, já com o corpo a uma boa distância, responde-lhe sem o olhar, enquanto assina uns postais negros e vermelhos que o casal de admiradores lhe estende.
ESCRITOR JOVEM
Isso, isso... Até à próxima, então.
Um MEMBRO DA ORGANIZAÇÃO, visivelmente cansado, vem agora na sua direcção. O escritor mostra-se simpaticamente em stress.
ESCRITOR JOVEM
Olha, só posso ficar aí uma meia hora. Ainda tenho de ir despachar dois poemas para ler logo à noite num festival de Barcelona. Nem sei sobre o quê...
Coça a cabeça pensativa.
ESCRITOR JOVEM
Não te lembras de nada, não? Qualquer coisa. Isto depois, lido com emoção, marcha tudo... Ainda mais em espanhol.
Entra no auditório, enquanto várias pessoas se apressam a tocar-lhe nas vestes e outras viram ostensivamente a cara.
CENA 2
INT. DIA. BAR
Um JORNALISTA CULTURAL tenta engatar uma ASSISTENTE EDITORIAL. Estão sentados a poucos metros de um ESCRITOR PREMIADO que dá uma entrevista em francês, falando muito baixo.
ASSISTENTE EDITORIAL
Ele é genial. O meu chefe já disse que para o ano o vamos trazer para a editora.
O jornalista avança um pouco mais a perna, quase ao ponto de tocar o joelho que se desnuda no aquecimento da sala.
JORNALISTA CULTURAL
Sim, do melhor. Este ano, já fizemos capa com ele, três vezes. Duas por causa de romances e uma por ter coçado o rabo enquanto citava Ernst Cassirer (1874-1945).
Os olhos da assistente brilham, românticos.
ASSISTENTE EDITORIAL
Sim, gosto tanto. Nunca acabo de ler nada dele... Mas enquanto beijo as páginas...
JORNALISTA CULTURAL
Beijas as páginas? Eh, lá... Isso promete. E quando ele emula Herbert Marcuse (1898-1979)?
Empurra agora os dois joelhos contra os dela, uma das mãos a voar, súbita sobre o seu braço.
JORNALISTA CULTURAL
Vais almoçar a que horas?
Mas o telefone dela toca, o que a faz levantar-se de rompante e afastar-se. O jornalista olha-a, melancólico, enquanto a vê desaparecer na direcção do sol.
O escritor premiado também já terminou a entrevista e fala ao telemóvel.
O jornalista levanta-se, e os seus olhos deparam-se com a figura de um notável crítico, que descansa os olhos numa pequena moldura com a figura seminua de Eva Mendes. Dirige-se a ele.
JORNALISTA CULTURAL
Vamos almoçar?
O crítico olha-o criticamente, por um instante. Depois, guarda, resignadamente, a moldurazinha no bolso do blazer sem gosto.
NOTÁVEL CRÍTICO
Vamos... A esta hora deve estar o Germano a protestar contra a mesa. Sempre temos um avanço para as carnes assadas...
Saem os dois, sem se olharem, empurrando a porta de vidro. No interior do carro de luxo, o jovem escritor diz qualquer coisa ao motorista. O crítico e o jornalista correm para apanhar boleia, mas o carro já se pôs em movimento.
JORNALISTA CULTURAL
Ainda o apanhamos!
NOTÁVEL CRÍTICO
Ainda o apanhamos!
Mas o carro já vai longe, e o sol, que saiu subitamente das nuvens, deixa-os cegos. Correm durante mais alguns segundos, mas desistem, ofegantes. Atrás deles, o edifício começa a deixar sair grupos de pessoas de sobretudos pesados.
(*) Possidónio Cachapa nasceu em 1965, em Évora. Licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, é autor de romances, peças de teatro e livros de crónicas. Mantém o blogue Prazer Inculto.
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