O ELO MAIS FORTE,
por Nuno Seabra Lopes (*)
As Correntes chegaram em 1999, pouco dias após termos tomado conhecimento da morte de Iris Murdoch e bem antes de as palavras «medo» e «terrorismo» se conjugarem em todos os idiomas, em todas as televisões. Foi então que o Francisco Guedes conheceu a Manuela Ribeiro e, com o apoio do vereador Luís Diamantino, viram aquilo que ninguém queria ver: existia espaço para criar uma utopia. Mas, ao invés de um sonho, criavam, de modo pouco inocente, uma doença de rápida disseminação, letal e transmissível pelo mais breve contacto.
Recordo-me que, nesse ano, não se falava das Correntes; vivia este mundo mais distraído com idiotias científicas, como o Y2K (ou bug do milénio) e coisas quejandas, pelo que poucos se deram conta do surgimento das Correntes, e ainda menos das suas consequências a médio prazo. Pessoalmente, foi nesse ano que comecei a trabalhar e, apesar de estar ali tão perto, no Porto, e de trabalhar aqui tão próximo, nos livros, descurei os avisos que certamente havia. Hoje só posso dizer que sou culpado, que não estava à espera.
Culpado, confesso e infectado. Incapaz de passar mais de um ano longe das Correntes sem que algo de tortura e sofrimento se conjugue em mim. Se tivesse que descrever os sintomas, diria, de forma atabalhoada, que existem palavras, das quais dependo desde sempre, que conseguiram sair do espaço privado que tenho entre os olhos e o cérebro e, de forma estranha, se materializaram e me envolveram como um vírus. Eu sei, a ideia é insuficiente e, confesso, algo parva. Mas é real, e parte do conceito de que só palavras conseguem substituir palavras, de que as palavras ditas e partilhadas da Póvoa têm o poder de ficar ao ar e permanecer nossas, privadas, disseminadas por uma multidão.
Além disso, sou egoísta. Gosto do sol invernal desta praia de Fevereiro, das ruas húmidas desta terra atlântica que conheço desde cedo, e gosto do olhar da gente poveira, que nos acolhe curiosa, como familiares vindos de universos invulgares que, talvez por essa razão, são atraentes para a normalidade da vida. Apesar disso, a minha ida à Póvoa ultrapassa um entendimento pessoal, que partilho com todos os que por lá caminham «acorrentados». Falo das Correntes e sei que falo de uma doença na acepção sentimental do termo, que troco palavras como radiografias entre todos vós, também adoentados.
Após sermos infectados, não mais se pode falar de retorno, só de doença e de recaídas. E assim recaio anualmente, como doente crónico vivendo a sua sezão predilecta, libertando o corpo das responsabilidades que esta doença acarreta. Como em todos os casos, estas Correntes são também malvadas e sabem ter a dimensão exacta, sabem que não podem permitir que cheguemos à exaustão e terminam perto da saciedade, despedindo-se com um sorriso maroto de quem sabe que, na fase posterior de acalmia, o corpo aplaca-se, mas a mente sente-se atormentada durante as 51 semanas seguintes.
Hoje, tendo passado a fase de recusa, cheguei à fase da raiva e digo que as Correntes acarretam em si uma parte sombria que nos amarra. O próprio nome o indica, e ninguém evita sequer dizer o contrário. Sei por experiência que, na Póvoa, todos se deslocam a horas impróprias, tentando tornar o normal em perfeito e o bom em mortal. Senti directamente a forma com que o Francisco, a Manuela e toda a equipa nos acolhem, com uma familiaridade que torna esta doença inevitável para tantos que por lá passam. O conluio é, julgo eu, maior do que o esperado, e todos para ele contribuem, da multidão que anseia inocentemente aquilo que todos têm para dar, a nós, que, manietados, só podemos dar o nosso melhor.
Resta-me aceitar a doença e inspirar a avidez do público, a descontracção deste espaço fora do tempo, esta luz difusa e romântica do Inverno na Póvoa. Sei hoje que, no ano em que se temia um bug informático, foi criado este vírus literário; que, num país onde poucos gostam de livros, muitos se deslocam aqui por eles; que, perto desta praia, existe uma utopia que infecta, anualmente e para toda a vida, gerações inteiras.
Nesta ilusão, acredito que tudo aquilo a que aspiramos é sermos quem somos, e que só nas Correntes D’Escritas isso se consegue, e por isso cá estou.
(*) Nuno Seabra Lopes é licenciado em Estudos Europeus, tem Especialização para Técnicos Editoriais e Mestrado em Estudos Editoriais. Trabalha desde 1999 no sector da edição, sendo Especialista Convidado do Curso de Especialização para Técnicos Editoriais da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É sócio-fundador da Booktailors e consultor editorial especializado nas áreas da edição e da estratégia.
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