NA CORRENTE, NAS CORRENTES,
por Pedro Vieira (*)
Caramba, é preciso um grande atrevimento para andar a glosar o Paredes (Carlos) e as Correntes (D’Escritas) no mesmo título, isto vindo de alguém com propriedade e presenças nos tops e pergaminhos reconhecidos ainda se tolera, mas neste caso estamos na presença de um extraterrestre que se prepara para dar um ar da sua graça de mochila às costas, sendo que a diferença (em relação a outros extraterrestres) é que dispensará o disco voador e chegará de veículo da CP, sempre é mais económico e o défice é o que se sabe, um extraterrestre que não procurará escravizar os humanos incautos nem pretenderá fundar uma religião para a qual se sintam atraídas as estrelas de cinema ibero-americanas, as de Hollywood já têm com que se entreter e o L. Ron Hubbard nem sequer foi convidado, outras línguas, outras Correntes, quando um com as suas, e estas decorrem na Póvoa de Varzim, local onde estive num par de ocasiões, e repare-se que abandonei o discurso na terceira pessoa (tenho pavor de ser confundido com um futebolista, embora estimasse muito a minha caderneta de cromos da época 1982/83 que trazia a estampa do Washington, central temível do Varzim SC cujo nome sempre me fascinou), dizia, à Póvoa já fui mas as recordações são difusas, estão ancoradas na primeira metade da década de 1980, altura em que parte das minhas férias de Verão eram passadas a norte na desconcertante praia da Apúlia, capital do mar gelado e areias negras e procissões ao sabor da maré, já para não falar na nortada, mãe, que toldos são aqueles enterrados no chão?, sem saber que aquelas famílias faziam parte do grupo dos avisados, gente que transportava sempre consigo os milagrosos guarda-ventos, quanto a nós era chicotada de meia-noite, para enrijar e formar o carácter e amaldiçoar o Verão à moda do Minho, mas eis que um dia alguém se lembra de guinar para a Póvoa (a avó, contrariada, gostava de estar em linha recta com a Braga natal) e eu cheio de fé na mudança, uma fé que se estilhaçou em dois tempos ante o mar tão grande, sai daí, Pedro, eu de corpito anafado de frente para as vagas, não podes ir ao banho, Pedro, e a areia a fazer lembrar berlindes, um gigantesco jogo do guelas, corta.
Noutra ocasião, uma visita para ver chegar o pelotão da Volta e eu que nem sequer sei andar de bicicleta, corta. Fast forward.
Com o passar dos anos, e já depois de dar o corpo ao manifesto no negócio do livro, a Póvoa começa novamente a povoar o meu imaginário, desta vez sem areia praça de touros casino mar cavado, as Correntes isto, as Correntes aquilo, fornadas de escritores a agruparem-se a 300 quilómetros de distância e eu a sentir uma inveja surda a crescer, é feio, não corresponde à minha formação cristã mas é humano como o catano, pardon my French como dizem os americanos, e a Internet que só piora as coisas, dos blogues então é melhor não falar, ufanos no retratar das mesas, dos lançamentos, das conferências, dos episódios pícaros (diabos me levem se algum dia vou esquecer o episódio da banana contado pelo Moacyr Scliar), as Correntes cada vez mais incontornáveis, aliás, as Correntes já dispensam adjectivações, as Correntes, ponto.
Na 11.ª edição estarei presente, de portátil à ilharga e mesa de desenho pronta a disparar, disposto a retratar um mundo que assusta e que fascina, um mundo encorpado, pejado de letras travessões histórias, de marés cheias de força, de vagas nas quais farei por mergulhar de cabeça. Não podes ir ao banho, Pedro. Isso é que era doce.
(*) Pedro Vieira, natural de Lisboa, livreiro, ilustrador e blogger, trabalha no grupo Almedina e é ilustrador residente da revista LER. Mantém o blogue pessoal irmaolucia e participa no blogue colectivo Arrastão. Está a escrever o seu primeiro romance, a ser publicado pela Quetzal Editores.
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