sexta-feira, 19 de março de 2010

Opinião: Memórias correntes, por Francisco José Viegas

MEMÓRIAS CORRENTES,
por Francisco José Viegas (*)

A maior parte dos visitantes e participantes das Correntes D’Escritas enumerará o fundamental: que a Póvoa, durante esses dias, será uma bravíssima «capital da literatura». Reconheço que é verdade — fala-se bastante de literatura, de livros. Encontram-se escritores que não se viam há um ano e, em alguns casos, há dois. Já me aconteceu encontrar escritores que nunca tinha visto, além de ter encontrado pessoas que não sabia que eram escritores. Subscrevo tudo. Subscrevo um louvor à Câmara da Póvoa — ao presidente e ao vereador da Cultura. Sério. E, inevitavelmente, à incansável Manuela Ribeiro, mãe de todos nós (e amiga), e ao inesgotável Francisco Guedes. Também subscrevo um louvor à paciência de dois dos barmen do hotel onde ficamos alojados, o Vermar, que fornecem bebidas em abundância e compreensão a olhos vistos. Os elevadores do hotel também me parecem merecer uma palavra, porque trabalham com esmero e eficiência — além do estimado público, que vem do Porto e de Miranda do Douro, de Salamanca e de Viseu, de São Paulo e de Lisboa.

Das duas últimas edições, trago recordações literárias importantes, alinhadas entre as memórias dessa semana da Póvoa. Entre elas estão: quatro garrafas de Jameson, novo, e uma de Bushmills, malte; um saco de gelo usado para ilustrar a presciência do Jameson, e subtraído com codícia aos frigoríficos do bar do hotel, já fora de horas; o frio que os fumadores apanham no hotel, junto da piscina, à noite; 17 anedotas literárias ou académicas contadas por Onésimo Teotónio de Almeida; quatro trocas de nomes de convidados, da responsabilidade de José Carlos Vasconcelos; o bigode de Leonardo Padura (não me refiro à barba); uma gracinha dita por Luís Fernando Veríssimo durante uma das cinco vezes (no total) em que experimentou falar; duas meninas que aguardavam, nervosas, a chegada de Mia Couto, e que o trocaram por José Eduardo Agualusa; uma peça de lingerie encontrada num corredor do 6.º piso, perto do quarto onde Daniel Mordzinsky tira as suas melhores fotografias; três anedotas de cariz eminentemente sexual contadas por Onésimo Teotónio de Almeida; 16 pacotes de Chesterfield esgotados por Carlos da Veiga Ferreira; uma edição da Playboy brasileira à venda no quiosque do hotel; o esparregado, as batatas salteadas, a salada de feijão e os ovos verdes do buffet do hotel; os chapéus de Manuel Rui; o ar de tédio do colombiano Santiago Gamboa ao pensar que está de regresso a Mumbai; cinco anedotas de motivo principalmente religioso contadas por Onésimo Teotónio de Almeida; a inveja por uma das camisolas de gola alta de Almeida Faria; a inveja por José Manuel Fajardo, em geral e por um motivo em particular; a descoordenação motora e vocal de Isabel Coutinho durante os pequenos-almoços; o bigode (entretanto desaparecido) de Antonio Sarabia; o bigode (nunca desaparecido) de João Rodrigues; duas meninas que aguardavam, nervosas, a chegada de José Eduardo Agualusa, e que o trocaram por Mia Couto; os escritores galegos, quase todos, com quem é mais fácil partilhar aguardentes locais; Corsino Fortes, o único escritor vegetariano de Cabo Verde; seis anedotas essencialmente políticas contadas por Onésimo Teotónio de Almeida; 23 boatos escrupulosamente tentados por Manuel Alberto Valente; nove penteados diferentes de Ondjaki; Nuno Júdice dançando com Alice Vieira; a conferência genial de Héctor Abad Faciolince no ano passado; a conferência inaugural de Eduardo Lourenço no ano passado; seis vezes que adormeci durante as conferências; José Mário Silva, o mais dedicado dos jornalistas presentes; a troca de mensagens entre José Eduardo Agualusa e Mia Couto; 43 anedotas de temática açoriana contadas por Onésimo Teotónio de Almeida; quatro autores que mudaram de editor durante as Correntes; uma aparição de Enrique Vila-Matas; duas sestas que dormi na varanda do hotel enquanto os meus colegas discutiam, empenhada e entusiasticamente, o devir da literatura, a importância da Língua Portuguesa, o silêncio das esferas e a vida estrepitosa dos escritores, creio que do Uruguai, mas não me lembro. Gostei de tudo.

(*) Francisco José Viegas é jornalista, escritor e editor. Multipremiado enquanto autor, desempenha actualmente as funções de director editorial da Quetzal Editores e de director da revista LER. Foi distinguido com o Prémio APE, pelo romance Longe de Manaus. O seu romance mais recente intitula-se O Mar em Casablanca.
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