ENCONTROS IMEDIATOS,
por Luís Ricardo Duarte (*)
Ele estava ali, sozinho, à hora do pequeno-almoço. Cheias e barulhentas, as mesas ali ao lado, mas a sua, de dez lugares, grande e reluzente, inexplicavelmente vazia. Eu estava ali, sozinho, à hora do pequeno-almoço, com o queijo e o fiambre num prato, a carcaça e o croissant noutro, um sumo de laranja entre os dois, num instável equilíbrio que só a desatenção própria de uma noite mal dormida poderia justificar.
Estávamos então os dois ali, sozinhos, ele a olhar para o vazio, eu a olhar para ele. Sabia que tínhamos agendado, no dia anterior, uma entrevista para as dez da manhã, daí a uma hora, mas mesmo assim aquela pareceu-me a melhor oportunidade para conhecer quem há muito desejava conhecer: Enrique Vila-Matas. Timidamente, numa timidez que vim a descobrir igual à sua, pedi licença para me sentar. E apresentei-me como jornalista em serviço nas Correntes d’Escritas, o mesmo com quem ia falar mais tarde. Com disponibilidade, respondeu-me que sim. E, acto contínuo, começou a falar: «Estou um pouco preocupado», disse-me, «porque tive de escrever uma crónica para o suplemento “Cataluña” do El País e decidi que o tema seria a minha viagem à Póvoa. Mas escrevi-a antes de vir para cá.» Depois de uma pausa, e agora com o olhar directo e suspeito, rematou: «O bom é que até agora tudo bate certo. Até chove e está enublado como eu previa…»
Foi mesmo a melhor introdução que poderia ter tido ao mundo das coincidências que domina a prosa do autor de Bartleby & Companhia, Doutor Pasavento e Exploradores del Abismo. Algumas fortuitas, como os improváveis encontros defendidos pelos surrealistas, outras deliberadamente provocadas, desencadeadas, manipuladas, artificiais e genialmente construídas por ele. Uma veia criativa que Vila-Matas nunca temeu aplicar à sua própria vida, mesmo depois do colapso cardíaco que o aproximou da morte, em 2006. «Agora sinto-me Outro», desabafou-me já no fim da entrevista; «Como se estivesse a beneficiar dos méritos póstumos de um escritor.»
Ser repórter na Póvoa de Varzim, durante as Correntes d’Escritas, é isto: estar sujeito a encontros imediatos que mudam ou aprofundam o entendimento que temos da obra de um autor, da sua personalidade, do seu método de trabalho, das suas fontes de inspiração e dos acasos que põem a máquina da criação em andamento. Em última análise, é uma enorme e incomparável aula de Literatura.
Sentado na plateia do Auditório Municipal, ouvindo o encadeado dos discursos, não consigo deixar de evitar a imagem de uma resma de papel sobre a qual trabalha um escritor. Com a caneta em riste e uma caligrafia vigorosa, vai assentando as suas ideias, num périplo pela imaginação. Cada página preenchida deixará marcas nas seguintes, num relevo quase invisível, às vezes mais forte, outras vezes apenas subtilezas, mas que, no fim, compõe o mapa para a explicação da criatividade. E todas as respostas são possíveis. Como diferentes também são as intervenções dos escritores convidados.
Nas Correntes d’Escritas, percebe-se que, apesar das opiniões que possamos ter sobre o resultado final, os caminhos para a Literatura não são estreitos. Podem começar na necessidade psiquiátrica ou nas mentiras de um avô que sobreviveu a um campo de concentração, na experiência iniciática do jornalismo ou na experiência única de um romance, no dom de ilimitados contornos ou no saber contar uma história, nas memórias de uma vida cheia ou nas dinâmicas do pensamento. O trabalho e a disciplina fazem o resto.
Mas nada disto é muito sério, nem excessivamente académico. Não tem o peso das verdades definitivas. Este encontro de escritores de expressão ibérica é, acima de tudo, um convívio. Um espaço em que o tempo se suspende durante quatro dias e o mundo se assemelha a um livro que apetece ler. E nesta geografia sentimental e literária ninguém consegue, nem deve, ficar muito tempo sozinho, quer ao pequeno-almoço, quer ao longo do dia, quer pela noite dentro. Os encontros imediatos não têm hora marcada.
(*) Luís Ricardo Duarte nasceu em Lisboa, em 1977. É jornalista do Jornal de Letras, Artes e Ideias, desde 2003. Foi director do jornal Os Fazedores de Letras, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em História, variante História da Arte.
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