quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Opinião: Reler, por Manuel Margarido

RELER
por Manuel Margarido (*)

Permanece entranhada no corpo daqueles que contam mais de cinquenta anos, dizem, a memória deste vírus que novo dizem. Antigo será então, cinquenta anos séculos contariam na história dos vírus, tivessem eles memória. E têm. Recordam-se das barreiras que terçaram, e em lembrando recombinam-se para enganar a memória orgânica dos que têm mais de cinquenta anos. Não enganam, por poderosa ser a biblioteca do corpo destes homens, destas mulheres. Em meninos combateram na trincheira do sistema imunitário, viveram para ainda transportarem a memória de um triunfo. São mais fortes, os que envelhecem. Relêem a gripe A. Não precisam muito de vacinas.

(E não se resgatarão um dia da morte, seja como for.)

Melhor seria o emprego de inesgotáveis lotes de vacinas (best-sellers, apropriados Livros do Ano) contra a memória do que já lemos. Um paliativo para combater a sua febril redescoberta, os arrepios, a suspensão do próprio respirar. Porque, ainda que passado muito tempo, num livro que nos atacou até às entranhas opera-se uma proeza de transmutação: sendo o mesmo é fatalmente outro. Mais poderoso que a nossa indefesa memória, feliz e rendida, por via de ser ela a recombinar. E assim se derrotar.

Pego nos Sonetos do Antero, rascunhados a lápis aos dezasseis anos. Releio: «Só males são reais, só dor existe;/ Prazeres só os gera a fantasia;/ Em nada, um imaginar, o bem consiste,/ Anda o mal em cada hora e instante e dia.» Anotada, a lápis, a palavra sentencioso. Expus-me ao Antero com dezasseis anos. Febril, fervi. A ele volto, outra vez me assola, três décadas mais tarde. E não tenho defesas para a contagiosa emoção que inaugura; nem vacina para a palavra que escreveria hoje: lúcido.

No trânsito da memória emotiva é devastador reler; nada que se compare à inútil mutação de um vírus na memória do corpo dos que têm mais de cinquenta anos.

(Resgata-nos um dia à morte, seja como for.)

(*) Manuel Margarido é consultor de comunicação, editor, publisher e escritor. Vive em união de facto com a poesia. É autor do blogue As Folhas Ardem.
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