N.E.: Este texto segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.
ACORRENTADOS,
por Francisco José Viegas (*)
Os leitores sabem que enfrentam a eternidade e, ao mesmo tempo, a fragilidade do papel, da tinta, da sombra. É esta a nossa história ao longo dos séculos: procurar os livros, proteger os livros, amaldiçoá-los também (porque matam, porque perturbam, porque nos arrastam para o abismo) — e perdê-los por quase nada, por uma tentação, por uma distração. É por isso que as Correntes D’Escritas esperam por nós, todos os anos. Nós — os leitores. Os autores. As correntes de ar. As noites inteiras. O sopro que vem nos livros e se comunica às bravas meteorologias dos encontros literários. O sono fora de horas. As conversas que têm fim e nunca tiveram um começo, um ponto de partida, um hemisfério, um mapa, uma circunferência desenhada numa mesa vazia.
Começamos por vir — pura curiosidade. Depois, puro hábito. Puro relógio e folha de calendário. As Correntes fazem parte desse calendário preciso e fatal, romântico como um folhetim de jornal do outro século. Inventários: necessidade de riso, necessidade de recolhimento, de conversa, de maldição e de abrigo. Tudo o que vem nos livros e todas as razões por que se leem livros: por inveja, por medo, por má sorte, por alegria, por infelicidade absoluta. Por dedicação e por acaso, por sem razão e por alguma razão. Por causa do frio, das energias demoníacas, dos labirintos, das portas entreabertas, das varandas em frente ao mar. Por causa das tardes de Fevereiro, por causa de uma causa, por não sabermos as causas.
Parte desses livros estão aqui, nas Correntes. São como a frase de Kafka: «O meu navio não tem leme, é empurrado pelos ventos que sopram nas regiões mais profundas.» Todos os anos chegamos para espreitar as vozes que espreitam mais fundo: autores, leitores, editores, bibliotecários, impressores, agentes, professores, todos anónimos que deixam um nome impresso na poeira da Póvoa, rente à maravilhosa luz do seu mar.
Esta edição especial da B:MAG traz as novidades essenciais: os mundos da Booktailors e da Quetzal vêm com ela. Também aí, autores, prémios de edição, aventuras de papel. Foi isso que sonhámos, com a Manuela Ribeiro, o Francisco Guedes, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim (o vereador Luís Diamantino), os lugares onde circulam as correntes de ar das Correntes D’Escritas.
(*) Francisco José Viegas é jornalista, escritor e editor. Multipremiado enquanto autor, desempenha actualmente as funções de director editorial da Quetzal e de director da revista LER. Distinguido com o Prémio APE, pelo romance Longe de Manaus, o seu romance mais recente intitula-se O Mar em Casablanca.
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