quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Opinião: Um momento constrangedor, por Rui Zink

UM MOMENTO CONSTRANGEDOR,
por Rui Zink (*)

Com o novo sistema de hierarquização em muitas editoras – responder a um administrador-delegado com o livro do deve e do haver em dia –, a pressão é cada vez maior para sacar coelhos da cartola. Tradução: mostrar que se fez dinheiro. E isto não é uma boca à LeYa. Quer dizer, também é, mas não só, porque há também as sucursais de grupos espanhóis, e mesmo aquelas que não têm uma entidade superior à qual responder acabam a comportar-se como se a tivessem, por osmose, ou como aqueles amputados que ainda sentem o membro fantasma. O resultado é penoso. Pessoas que tinham ido para o negócio com algumas ilusões não só as perdem como se vêem obrigadas a fazer algo com que não contavam: ter «ideias editoriais». Essas ideias vão do menos mau ao pior que mau e já podemos começar a ver o resultado nas livrarias: geralmente são achados que não lembram ao diabo, mas lembraram àqueles pobres diabos. Os «sete momentos» mais importantes na obtenção duma pátria, as «12 etapas» da salvação do orgasmo, «36 receitas mágicas» nos contos de fadas tradicionais. A inspiração vem obviamente da América, como antes os bebés e a literatura vinham de Paris. Algumas dessas «ideias» até dão filme: uma rapariga que fez «365 receitas num ano» já está anunciada em cartaz no Fórum Picoas, por sinal ao lado duma livraria que, se o editor for atento, terá o livro na montra, desde que para tal haja dinheiro. Por alguma razão estas ideias têm quase sempre uma máscara aritmética: suspeito que é simplesmente por causa da suspeita de as pessoas andarem tão desmioladas que os números emprestam alguma ilusão de ordem. Nada tenho contra fazer dinheiro, e há formas mais desonestas do que fazendo um «achado» em papel com uma capa colorida. Simplesmente, parte destas brilhantes ideias nem sequer vende. Porque acontece uma de várias coisas: 1) o editor não está a escolher o que vende mas o que ACHA que vende; 2) ao tentar arranjar produtos exclusivamente para vender, o editor baixa ainda mais a fasquia do que necessário; 3) ao sentir algum asco e vergonha por si mesmo (porque não foi para isto que a sua mãezinha o educou), o editor transfere esse asco para o leitor; 4) o génio do marketing, esse sim formado para «vender», está demasiado ocupado a vender-se como peça valiosa (síndrome de Edson) e, por isso, acaba por não fazer tão bem o seu trabalho; 5) o editor, sobretudo se jovem e ambicioso, está a ver se consegue o seu winner shot, que o levará a ser cobiçado pelos grupos rivais e, como nas empresas a sério, a conseguir negociar um contrato blindado e suculento a nível de estrela pop.

(*) Nascido em Lisboa em 1961, Rui Zink é escritor e professor no departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo também aí coordenado a pós-graduação em Edição de Texto. Autor de uma vasta obra ficcional traduzida em várias línguas, O Destino Turístico, publicado pela Teorema em 2008, é o seu romance mais recente.
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