sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Opinião: Banda desenhada - essa droga, por Diogo Coelho

BANDA DESENHADA – ESSA DROGA,
por Diogo Coelho (*)

Quando começou o meu vício por banda desenhada, reinava ainda a teoria entre adultos de que a BD tinha como alvo crianças demasiado preguiçosas para ler «coisas a sério». Alguns professores mais novos achavam que era uma boa estratégia para meter os miúdos a ler. Já os pais não ligavam. Desde que estivessem entretidos, não havia problema. Até ver, foi a segunda teoria que prevaleceu. O prazer de ler romances, ficção ou ficção científica veio mais tarde. Mal sabiam eles que o problema não era esse.

Tudo começou com a pilha de comics herdada do irmão mais velho, o primeiro dealer. Era chegar da escola, despachar o TPC e entreter-me a lê-los, uns a seguir aos outros, no local de trabalho dos progenitores, antes do regresso a casa. O vício arrancou com os gibis (traduções de inglês para português do Brasil): pequenos livros que compilavam dois e três comics, publicados com alguns anos de atraso. Lia-se, nos anos 1990, coisas publicadas nos Estados Unidos nas duas décadas anteriores. Este material, de qualidade questionável, fez-me confundir um pouco o português português com o português brasileiro. É «entretinha-me a ler» ou «me entretinha a ler»? (O que vale é que o Nuno Quintas ainda vai rever o texto).

Depois de devorar o que tinha em mãos, precisava de mais, e começava a ressaca. Lá vinham os empréstimos, completando o universo Marvel, com um pouco de DC à mistura (os dois principais produtores de conteúdos da BD norte-americana). Férias inteiras da escola dedicadas ao vício. Sempre super-heróis. Os tios patinhas e patos donalds tinham ficado, há muito, pelo caminho. Como se não bastasse, começava o consumo directo. Só que a mesada não dava para tudo, pelo que, durante a adolescência, o acesso permanecia restrito. Em desespero, instigava os colegas na escola, com conversas de aventuras de homens crescidos, de fatos justos e capas, a voar e a disparar raios dos olhos. Levar comics para a escola, lê-los durante as aulas, metidos no livro de Matemática, e emprestá-los. «Toma só um. Só uma vez não vicia.» Convencê-los a comprar determinados títulos, para poder ler mais e mais. Gerou-se um grupo que se excluiu dos demais. Crianças estranhas que viam o mundo de forma diferente.

Cheguei à faculdade. A liberdade aumentou na mesma proporção da mesada. Se os tios patinhas eram o álcool e a BD brasileira as drogas leves, a americana era a cocaína e a heroína. Vim de uma terra pequena para a capital e encontrei sítios com estantes cheias de trade paperbacks e graphic novels. Tudo à descoberta. De repente, tinha acesso a coisas adultas, numa altura em que os heróis da moda, para poder salvar o dia, respeitavam cada vez menos as leis. O estado era tal que passava madrugadas no vício, noite dentro, sem parar de ler. Só mais um. Só mais 15 minutos. Aulas… nem vê-las.

Já não é tão mau. Hoje em dia, a capacidade social é mais desenvolvida. Os outros já não percebem tão claramente as olheiras nem os pensamentos distantes, que deambulam por outros mundos. Trabalhar para alimentar o vício, é o que por vezes parece. Chegado ao fim do mês, as tremuras tomam conta do corpo. Arrancam os contactos com o dealer mais recente. «Quando chega o material? […]. Está atrasado outra vez?!» O pânico na voz. A dose nas mãos. Ir comprá-la a correr, durante a hora de almoço. Contar os minutos até acabar mais um dia de trabalho. Chegar a casa com o saco dentro da mochila. O delírio de ver capas anunciadas meses antes da publicação. Folhear e recordar a história interrompida durante um mês inteiro. A frustração combinada com o êxtase, ao vislumbrar as palavras no final: To Be Continued.

O meu nome é Diogo Coelho e sou viciado em BD. É a minha paixão. É a minha desgraça. É o meu primeiro amor.

(*) Diogo Coelho é viciado em BD, filmes e séries de televisão. Qualquer interacção pessoal serve somente para descrever a última obra de ficção descoberta ou para conseguir acesso a mais «drogas». Tirou um curso que pouco ou nada contribui para a sociedade. Foi «adoptado» pelos Booktailors, em Fevereiro de 2009.
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