Apresentamos aqui a versão final integral do comentário do editor Guilherme Valente sobre José Saramago, publicado no jornal Região de Leiria.
«Saramago é, quanto a mim, um escritor engenhoso, mas elementar e muitas vezes habilmente lamecha, que, em termos de ideias, escreve e fala para um público pouco culto, desprevenido criticamente, cuja ignorância explora, para cujos juízos mal informados, sectários ou primários apela, obscurecendo, em vez de iluminar. Público de «esquerda» ou de «direita», crentes ou ateus, como muito expressivamente revelam a grande maioria das intervenções que a propósito deste seu livro se ouviram, designadamente nos programas abertos aos ouvintes da rádio e da televisão.
Quando fala da Bíblia, de ciência, das viagens de exploração do Universo, ou de Castro, ou de tantas outras matérias sobre as quais, sempre no mesmo tom teocrático, diz regularmente enormidades, a minha dúvida é se ele é mesmo tão limitado culturalmente como parece, ou se não se tratará de um sacrifício pulsional da inteligência e do conhecimento. Ou será antes (como pressenti quando um dia o ouvi falar, com suspeito descontrolo, sobre «O Evangelho Segundo Jesus Cristo») a manifestação freudiana de um recalcado remorso... que, se assumido, poderia ser redentor?
A Bíblia é um grande livro, tão grande que não deixa de interpelar/inquietar Saramago (que, aliás, também tem mostrado saber viver dele). Mas quantos outros grandes livros não lançou já, significativamente, Saramago na fogueira?
Insuportável é ouvi-lo vitimizar-se com as reacções à sua própria intolerância. Para este Nobel - imagine-se! - tolerância é a aceitação calada pelo outro das posições, mais do que discutíveis ou mesmo estúpidas, com que o provoca. Sem que conceda ao outro reagir, nem mesmo apenas à violência e desumanidade (sem qualquer qualidade literária ou estética) da forma e dos termos que utiliza.
E é preciso ter «lata» ou ser mesmo «cego» para que alguém que fez o que ele fez, defende o que defende e diz o que diz se tenha referido, na conversa com o bom Padre Tolentino Mendonça, ao que lhe sucederia se estivéssemos no tempo das «fogueiras de São Domingos». É que fogueiras houve várias, e se estivéssemos num tempo de fogueiras, estou convencido que seria o Padre Tolentino Mendonça quem seria lançado nelas. Que grande lição deu, de cultura, abertura de espírito e de generosidade, admirável generosidade por não ter «esmagado» Saramago, como poderia. Se perguntássemos a alguém que não soubesse quem era o Nobel, ninguém diria, certamente, pelas ideias, a humanidade e a visão do mundo em confronto, ser Saramago.»