UMA ESPÉCIE DE PARAÍSO DEMASIADO DISTANTE,
por Margarida Ferra (*)
Tenho passado umas boas horas da minha vida a arrumar livros. Primeiro, aprendi a ordená-los por tamanhos, numa escada atabalhoada com o empenho e a solenidade que as crianças põem nas primeiras tarefas. Eram os meus livros. Havia mais livros infantis em casa, mas não eram meus, eram muito mais bonitos e pareciam eternamente novos, eu só podia mexer-lhes com autorização. Mas lembro-me ainda hoje da cor e do tamanho das lombadas e do lugar preciso que ocuparam, durante anos, a estante da sala. O que quer dizer que aquele era o sítio daqueles livros – os livros para pequeninos que pertenciam aos crescidos.
Quando trabalhei em livrarias, os títulos eram arrumados no menos mau dos sistemas de classificação. Numa lógica que pudesse ser facilmente deduzida por todos os outros colegas, ou mesmo por um cliente mais atento e audaz. Ficção em língua portuguesa, ficção traduzida, poesia, BD, infantil, livro técnico e apoio escolar, tudo arrumado como dava jeito, porque o mobiliário nem sempre se adequa à oferta, que, como bem sabe o leitor, varia com a época do ano. Foi nessa fase da vida que apurei o meu sentido localizador de livros perdidos: outra vez a memória da espessura da lombada e as cores, e o mais básico dos truques – conhecer de cor os logótipos de todas as chancelas. E saber que, quando não estão organizados por ordem alfabética segundo o apelido do autor, o mais provável é estarem arrumados por editora, o mesmo alfabeto a distribui-las na estante. Se assim não for e se os livreiros forem expeditos, estarão alinhados lado a lado com os outros do mesmo distribuidor, numa ordem silenciosa que só os profissionais do sector dominam e que se justifica pelo comodismo na hora das devoluções.
Em casa a matéria persegue-me. Várias mudanças depois, as «Billy» acolhem os volumes que têm vindo a tomar conta do apartamento. Gosto de pensar na melhor classificação para arrumar os livros, simplificar a procura, dar cor às estantes, saber ao certo onde vai ficar cada novo título que chega. Na cozinha, os de receitas. No quarto das crianças, os que lhes pertencem. O outro quarto de dormir recebe duas mesas-de-cabeceira, que são estantes de leituras prometidas, em curso, eternamente adiadas, edições únicas e especialíssimas. E mais estantes com álbuns, BD, edições várias das Alices do Carroll e tudo o que restou da minha infância. Na sala, poesia portuguesa – a secção mais difícil de arrumar dada a espessura da lombada, mínima, e que muitas vezes não traz informação –, poesia estrangeira (traduzida ou não), ficção em português. No corredor: teatro, ficção estrangeira (traduzida ou não), livros sobre livros, biografias de escritores, revistas, literatura de viagens (dos guias a Theroux), livros sobre xadrez e uma colecção de ficção científica. No escritório: ensaio, crónica e toda a não-ficção que não coube em mais lado nenhum.
É um sonho poder criar um sistema de raiz, à medida de quem o usa, e aplicá-lo. Mas, como todos os sonhos, nada disto passa deste texto e de uma outra anotação, de várias conversas e instruções aos restantes utilizadores. Da mesa pequena que supostamente recebe novidades – que, depois de apreciadas e conhecidas, deviam encontrar o seu lugar na estante –, mal se vêem as pernas, o tampo adivinha-se. No escritório, as secretárias estão imersas. As «Billy» da sala e do corredor suportam com dificuldade uma fila dupla de novos títulos que, em comum, têm letras na lombada, numa completa perversão da ordem que ocultam. Inalcançável, um paraíso de que nunca sou merecedora, uma biblioteca organizada que revela sem exibir e que liga os livros uns aos outros por linhas invisíveis na primeira visita.
(*) Margarida Ferra tem 32 anos e é licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou numa pizzaria, num jornal, numa galeria de arte contemporânea, em duas livrarias e no Palácio da Ajuda. É responsável, desde Janeiro de 2009, pela área de comunicação da Quetzal Editores.
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