Quase esgotado,
por Jorge Colaço (*)
[N.E.: Esta crónica foi originalmente publicada no blogue Annualia]
Escrever letra à frente de letra, palavra após palavra, frase a frase, sem erros de ortografia, de pontuação e de acentuação, sem grandes deslizes de sintaxe e de sentido, embora hoje um feito digno de nota, não deveria ser um facto notável em si mesmo. Sobretudo, se estivermos a falar de gente que escreve, edita, revê, traduz, publica.
O que quero dizer é que, para escrever bem, não basta escrever certo. Do ponto de vista do acerto, não faltam hoje legitimações de vasta gama de usos e costumes espúrios. Para escrever bem, no entanto, é necessário conjugar alguns outros factores, objectivos uns, muito subjectivos outros, mas nem por isso inexistentes ou menos importantes – a adequação e propriedade do que se diz, a escolha mais ou menos feliz das palavras, relacionável com a maior ou menor familiaridade com a língua e a maior ou menor consciência da sua plasticidade, o tom que se adopta, expresso pelo grau de formalidade ou informalidade, pelo ritmo imprimido, pela pontuação, pelo cúmulo de cultura implícita, pelo tipo de recursos utilizados, pela elegância da frase…
Mas como medir a elegância da frase e a pertinência comunicacional ou estilística de uma determinada opção lexical ou sintáctica? Como se mede o gosto ou a falta dele? Este é um terreno difícil, onde facilmente se esbarra no relativismo opinativo e reinante. Um simples «eu não acho» deita por terra quaisquer argumentos.
Veja-se a diferença, nestes exemplos muito simples, entre escrever «como é que se cumprimenta um extraterrestre?» e escrever «de que forma se cumprimenta um extraterrestre?», entre «que é que se diz a um talibã?» e «que conversa manter com um talibã?», entre «como é que se discute com um urso?» e «como discutir com um urso?». Nenhuma das frases está gramaticalmente errada, mas há uma diferença, para quem estiver em situação de a compreender.
O drama é que, hoje, quem lê, mesmo profissionalmente, lê a um nível baixo: o que nunca ouviu está mal e o que não conhece não existe. Escrever bem, não apenas escrever certo e dentro dos limites de um fraseado insípido e incolor, surge como uma estranheza, uma anormalidade que é aconselhável reduzir ao corrente e vulgar.
Muitos chamam «simplificação» a este processo de tornar uniforme e raso o que não entra nos seus padrões de uso. Mas esta suposta simplificação, inimiga confessa do estilo, faz cair textos realmente bem escritos, sobretudo se forem saborosamente bem escritos, no campo de um exotismo intolerável.
Neste mundo às avessas, escrever bem, nesta acepção não exclusivamente gramatical, tornou-se perigosamente conotado com escrever mal. E é este mal, neste preciso sentido, que muitos resolveram querer assanhadamente extirpar.
Como se costuma dizer: «é o que temos, o resto está esgotado». Ou, pelo menos, está quase.
(*) Jorge Colaço (n. Ferreira do Alentejo, 1956) é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ensinou Português como Língua Estrangeira, exerceu actividade docente no ensino secundário e criou um curso livre de redacção e revisão, do qual foi coordenador e professor. Desempenhou, desde 1992, funções de coordenador editorial da área de Humanidades da Enciclopédia Verbo – Edição Século XXI (29 vols., 1998-2003), para a qual também redigiu dezenas de verbetes. Assumiu funções idênticas em outras obras de referência, nomeadamente nos volumes Annualia. Colaborador de Biblos - Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, tem publicado textos críticos e literários em obras colectivas e revistas.
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