sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Opinião: Por causa das conchinhas, por Afonso Cruz

POR CAUSA DAS CONCHINHAS,
por Afonso Cruz (*)

Fala-se muito do cheiro dos livros quando o tema são os leitores digitais. Concordo que os livros têm cheiro. Infelizmente. No outro dia – em Junho, mais propriamente –, na Feira do Livro de Lisboa, comprei um livro com bolor. Era um Chandler e, por isso, o mofo nem sequer é admissível; não estamos a falar de incunábulos, perdoem-me o calão. Não era nenhum Heródoto, nenhum Sexto Empírico e muito menos um roquefort. Se tiver de ler livros com cogumelos que não servem para cozinhar, prefiro um leitor digital. O nariz pode, na literatura, intervir num conto de Gógol, num pensamento de Pascal ou, implicitamente, na escrita de Cyrano, mas o que me entra nas narinas não considero literatura. Relembro que Santo Agostinho não gostava que, durante a missa, houvesse música ou incenso. São coisas que distraem o espírito, garantia ele.

Na minha hierarquia celeste – que compreende quatro assoalhadas e uma varanda relativamente pequena –, Diógenes de Oenoanda (século II d. C.) ocupa um lugar privilegiado junto do sofá da sala, perto da lareira. Esse lugar cimeiro tem feito com que, cada vez que tenho de escrever sobre alguma coisa, desde a próxima derrota do Sporting à criação de hamsteres, meto-o na conversa. Neste caso, porque esta discussão, sobre o suporte dos livros, não é nova. Lembro-me bem do tempo em que Diógenes de Oenoanda mandou construir um muro gravado com a súmula do pensamento de Epicuro. Vinte e cinco mil palavras numa parede de 80 metros de comprido por três de altura. Isso é que era um suporte físico: pedra fácil de ler e acessível a todos. Foi essa, aliás, a ideia de Diógenes. Ele era rico o suficiente para dar a sua maior riqueza, que era, no caso dele, o epicurismo. Há outras pessoas que se contentam com dinheiro. E agora, imagine o leitor, o arrepio que sentiram as distribuidoras ao colocar a hipótese daquele suporte poder vir a ter futuro.

Chegamos então à conclusão deste texto, que não terá, forçosamente, nada a ver com o que foi escrito anteriormente (excepto referências a paredes).

Gosto muito de livros e prefiro o seu suporte físico, o papel (sem esquecer que o verdadeiro papel do livro é ser lido, coisa que pode acontecer até no formato digital). Sei que o mercado se preocupa com estas preferências e o mundo dos livros irá, talvez, mudar. Mas os livros de papel continuarão a existir e a ser vendidos, essencialmente por causa das conchinhas. Este factor é um elemento essencial a esta discussão: toda a gente já apanhou conchinhas na praia, não adianta negar. Se há uma coisa que nós, seres humanos, gostamos muito é de conchinhas, de selos, de cromos e de todas essas coisas. Gostamos dos objectos, de possuir coisas, de os ter na parede. Um shuar (jívaro, se quiser insultá-lo) arranjou maneira de reduzir cabeças e pendurá-las no lar. Um caçador empalha o bicho, e uma biblioteca pessoal tem uma imagem a manter, não pode ser feita de virtualidades. É preciso que nos rendamos à evidência: a de que todos nós precisamos de paredes. Precisamos delas para pendurar o nosso orgulho e as nossas posses mais lisonjeiras, prateleiras com livros, armários com conchinhas. E é precisamente aí que o leitor digital falha redondamente.

(*) Nasceu em 1971 e é autor dos livros A Carne de Deus (Bertrand, 2008) e Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal, 2009). Também é músico (da banda The Soaked Lamb), ilustrador, e realizador.
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